quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014


Simone de Beauvoir: a perspectiva de uma literatura aguda

 Ana Maria Haddad Baptista

A Literatura pode e deve comportar, natural ou intencionalmente, outras dimensões além  daquilo que a caracteriza, ou seja, graus de literariedade. Em outras palavras: graus de poeticidade nos mais diversos níveis. Nunca é demais lembrar que a literatura somente pode ser considerada como tal se houver uma função poética predominante que a defina, que a  caracterize, ou, estaremos diante de um manual de instruções, só para ficarmos com um exemplo.
Os Mandarins, Simone de Beauvoir (1908-1986), excelente tradução de Hélio de Sousa,  Editora Nova Fronteira, eis uma obra clássica, no sentido estrito da expressão, que merece ser lida e relida ao longo de nossas vidas. Independente dos prêmios e elogios  que a obra – considerada uma das melhoras escritas pela autora francesa – tenha recebido, é leitura obrigatória. Por quê?
Mais do que nunca porque Simone de Beauvoir anda esquecida, inclusive, injustamente, pelos meios acadêmicos aos quais ela pertenceu com dignidade. Foi professora universitária, escritora e filósofa. Acrescente-se a tudo isso uma atuação ativa, revolucionária, nada passiva,  em tudo que carregou o seu nome. Simone jamais ficou sentada num escritório ou biblioteca em níveis meramente contemplativos ou indagativos. Lutou e interveio em importantes questões a favor de igualdades, sobretudo, em relação à condição das mulheres.
Os Mandarins: uma escritura que  carrega a atmosfera sufocante de uma Paris arrasada pela Segunda Guerra Mundial.  Danos de uma guerra cujos gritos, ecos e o ressoar da fome e misérias foram ouvidos, de fato e de perto, pelos parisienses.
Simone de Beauvoir busca os fragmentos, em todos os graus, das interioridades humanas dos sobreviventes e daqueles que mais direta ou indiretamente participaram da Segunda Guerra Mundial. Quase todos os personagens da obra fizeram ou fazem parte de seu círculo. E daí a grande implicação do livro com a filosofia: pensamentos, intenções, buscas dos intelectuais que vão tomar novos rumos em suas próprias vidas, mas  possuem uma preocupação : o que fazer para que o futuro tenha melhores perspectivas? Qual seria o futuro? O que será da Europa, naquele momento, totalmente mutilada? A quem pertencerá de fato a Europa? Como reconstruí-la? Estas e outras questões, por intermédio das mais diversas situações, a escritora francesa coloca em xeque.
Em todas as propostas expostas pela escritora francesa perpassam claramente um agudo questionamento a respeito de valores éticos e morais. Tudo isso sem contar as discussões políticas implicadas, em especial, ao papel e objetivos dos intelectuais num clima em que quase tudo morreu. Sonhos. Pessoas. Construções. Temporalidades.  “Sobreviver, morar do outro lado da vida: no final, é muito confortável. Não se espera mais nada, não se teme mais nada e todas as horas parecem recordações. Foi o que descobri durante a ausência de Nadine: que tranquilidade! As portas do apartamento não batiam mais, eu podia conversar com Robert sem frustar ninguém e ficar acordada até tarde da noite, sem que batessem à minha porta; aproveitei isso. Gostava de surpreender o passado no fundo de cada instante. Um minuto de insônia bastava: a janela aberta, deixando ver três estrelas, ressuscitava todos os invernos, os campos gelados.”
Finitude, presente, passado, enquanto temporalidades transitórias são as concepções que podem ser destacadas neste livro fascinante. Da objetividade de um tempo a dúvidas interiores que  não cessam de agulhar a difícil construção, individual e coletiva, das histórias das subjetividades humanas.
Nessa medida, nós, contemporâneos, ao final desta leitura, ficamos quase perplexos. Vemos que a maioria dos questionamentos da escritura de Simone  bifurcaram-se por jardins tortuosos, cruéis. Contudo, uma coisa fica muito clara: o futuro realmente, em grande parte, não admite previsibilidades.
Ler Simone de Beauvoir é ter um contato íntimo, fascinante...para se pensar melhor nossas temporalidades. Entendendo-se temporalidade como subjetividade. A marca maior de sermos e estarmos neste mundo.

Obs: Grande parte deste texto já foi publicado por outros canais.



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