sexta-feira, 17 de junho de 2016


 

Espelho incerto: a palavra poética ou a caligrafia silenciosa

 

Ana Maria Haddad Baptista





 A contemporaneidade, ninguém duvida, tão informatizada, globalizada...fala, cada vez mais, línguas que, praticamente, não são entendidas? Por quê? Porque não bastam os meios de comunicação. Não basta ter o tal do 'acesso à informação' (que horror... chavão mais desgastado). É preciso que a humanidade, de uma vez por todas, se entenda. Minimamente. Babel já deveria ter sido minimizada. E, paradoxalmente, não foi! O bom e velho Deleuze já havia avisado: "só há intersubjetividade artística". De acordo com um dos filósofos mais ternurosos  que tivemos, somente os signos artísticos (e entre eles os verbais) visto que imateriais e sensíveis, poderiam atenuar a famosa incompletude (hiatos sempre insondáveis) entre as subjetividades.
Mas. De repente a palavra poética teimosamente se ergue. Caligrafia Silenciosa, George Popescu, Editora Rocco, graças à tradução de Marco Lucchesi, vem para o público brasileiro. E pasmem! O tradutor não esconde o texto original. A obra é bilíngue.  Lucchesi não é daqueles tradutores que gastam quase metade da obra para justificar seus 'métodos de tradução'. O grande método e mérito de Lucchesi é a sensibilidade+repertório. A capacidade de transpor seus limites de objetividade e atingir subjetividades. Temporalidades humanas. Eis o melhor método de tradução. Isto é admirável. Afinal...conforme se sabe Lucchesi é poeta. Alma de poeta. Olhar de poeta. E isso muda tudo.
A introdução da obra é simplesmente fascinante. Nas palavras de Popescu: "A poesia não deve mudar o mundo nem sequer melhorar a condição humana, tampouco ser uma alternativa, mas simplesmente uma medicina naturans, uma saída do círculo impossível do destino. A poesia destrói a ilusória escala de valores ditados pela moda, inverte o avesso mediante o retorno da tradição, recusa o perigoso jogo de dados e assume apenas um único risco: um halo por meio do qual a luz da Palavra é filtrada, quando esta se encarna dentro de um verso que tangencia o divino."
A poesia, a literatura, jamais mudaram o mundo. Saramago, em momentos de grande amargura diante das miserabilidades humanas (lembremos Os Miseráveis de Victor Hugo), declarava que se ele ou outros escritores jamais tivessem existido o mundo estaria do mesmo jeito. Cá entre nós: o homem é uma invenção que nunca deu certo. Convenhamos senhores...(mal posso me lembrar que se os poucos detentores de uma fortuna sem limites abrissem mão de apenas quatro ou cinco por cento de seus bens, não haveria, na prática, mais nenhum miserável neste planeta. Que amargor!) E, aqui, Popescu: "Na densa e silenciosa escuridão como a noite/ de um amor desperdiçado/ sequer uma palavra/ só o nariz erguido na direção de um céu invisível/ zigoma apertado nesta imagem/ que cai no teu ventre como um cão/ magoado na soleira de sua última vontade/ de tornar-se homem."
Contudo, a poesia aponta a probalidade de um outro mundo. Possibilidades de outros caminhos com os quais podemos, ao menos, sonhar. Delirar! E os delírios poéticos afagam/afogam/ nossas mágoas mais profundas. Novamente Popescu nos responde: "mas não é assim - respondo-/ com o olhar profundo da memória/ se cavares nessa arqueologia/ que a transparência também faz tua/ irás descobrir - basta que o desejes -/ basta que possas ainda querer/ irás redescobrir todas as pobres existências/ que me serviram de escudo e muro de defesa/ no tempo mágico de uma só piedade."



Caligrafia Silenciosa  integra a coleção Espelho do Mundo. Nas palavras do tradutor : "é uma janela do presente, aberta para  a criação a poética dos quatro cantos do globo, no diálogo entre os povos e na cultura da paz. Não o mundo, mas sua representação. Não a imagem, mas o espelho incerto, no qual brilham a diferença, a beleza do rosto, nas vozes de um mundo novo, em construção." E estas palavras, belezuramente, traduzem (inclusive) o melhor da literatura: a luta, desesperadora, de apaziguar as diferenças. A luta para dar sentidos a existências anônimas. E o sentido e as grandes mudanças somente podem ser concretizadas pelo pensamento. E o pensamento somente pode ser traduzido pela linguagem. Ezra Pound, habitualmente,  irado, bravo, indignado, inconformado,  dizia que quando a humanidade  estava quase 'falindo'...a literatura era convocada. Na derrocada do pensamento o escritor é lembrado. O poeta é convocado. O único que consegue "ouvir estrelas". E, sobretudo responder: "Como se dirá borboleta na língua das borboletas?/ Borboleta? Pura  e simplesmente?/ E qual o significado de borboleta? Na língua delas, é claro./ Não sei. O que sei é que num mês de junho sem nome, nas colinas próximas de Áquila, no coração da Itália, uma rosa me disse: 'há quem saiba - disse -, há quem possa conversar com as borboletas. Com as vivas e com as que/ [ já não existem." O poeta (em especial, os malditos) conversa com estrelas. E não venha a NASA com seus tentáculos, destruidores de sonhos, com teorias de 'estrelas mortas', 'abolição de São Jorge matando o dragão'. Estrelas não morrem. O poeta conversa com seu brilho que atravessa as temporalidades.  A palavra poética traduz, sim,  a fala de elefantes,  formigas, tartarugas. Ah! E  a de dragões!

Obs: Este texto, em grande parte, foi publicado pela revista Filosofia.