sábado, 25 de novembro de 2017





Educação: Bataille e a interioridade




Ana Maria Haddad Baptista





         

O que realmente pode se entender por subjetividade? Quais seriam seus limites? Haveria uma profundidade subjetiva, tal como nos sugerem Bergson, Kant e tantos outros filósofos? Em que medida conseguimos, via Deleuze, alcançarmos as profundezas de nossa temporalidade, visto que subjetividade, sob certa perspectiva, não passa de temporalidade interior? Em outras palavras: temporalização humana.  Esta e outras questões são colocadas à tona iluminadas por uma espécie de constelação dos conceitos formulados por Georges Bataille na obra A experiência interior, tradução de Fernando Scheibe, editora Autêntica.
            Bataille em vida foi um escritor pouco conhecido. Quase marginalizado. Seu conjunto de obras, muito variado, felizmente, foge às categorias das grandes e canônicas classificações. E, sabe-se, quando uma obra não se subordina ao lugar comum, a tendência quase que imediata é ficar de lado. Porque desconcerta. Desafia. Instiga. Põe em risco a servidão-escravidão (sempre útil).  Verdade seja dita.
            Nessa medida, a obra em questão nos coloca em xeque. "A experiência interior responde à necessidade em que estou - e a existência humana comigo -de pôr tudo em causa (em questão) sem repouso admissível. Essa necessidade já atuava apesar das crenças religiosas, mas tem consequências muito mais radicais na ausência dessas crenças. As pressuposições dogmáticas deram limites indevidos à experiência: aquele que já sabe não poder ir além de um horizonte conhecido." O fragmento em referência denuncia um dos polos do livro. A moral, o comportamento e outros conceitos colocados à prova da possível submissão ou transgressão. Neste sentido, a leitura do livro conduz, a nós leitores, questionarmos, a fundo, nossos próprios valores. E nos conduz ao confronto. Tarefa dolorosa. Exercício no qual somente a boa literatura poderá fornecer, como , por exemplo, no seguinte fragmento: "A experiência interior, por não poder ter princípio nem um dogma (atitude moral), nem na ciência (o saber não pode ser nem seu fim nem sua origem), nem na busca de estados enriquecedores (atitude estética, experimental), também não pode ter outro anseio nem outro fim que ela não própria. Abrindo-me à experiência interior, postulei seu valor, sua autoridade. Não posso de agora em diante ter outro valor nem outra autoridade. Valor, autoridade implicam o rigor de um método, a existência de uma comunidade". Diante do exposto, minimamente, conseguimos vislumbrar os principais elementos que circunscrevem a tão sonhada liberdade. As indagações mais reveladoras, a nós mesmos, se traduzem, por exemplo, em como escapar da autoridade.
            Em outras palavras, segundo o autor: em que medida ao negarmos qualquer forma de autoridade, não estaríamos, nos próprios, a impor uma outra autoridade? Seria possível sair de tal círculo quase vicioso? A supressão de determinados valores nos carrega a impor outros? Mais adiante, na obra em questão, Bataille provoca o leitor no sentido de que seria necessário apreender certos conceitos por dentro. Em nossa obscura (talvez) interioridade. Como? A prática seria um bom caminho? Não há respostas prontas. Bataille jamais se sujeitaria a tal redução. Os grandes nós existenciais permanecem, sabemos, na disputa das mais variadas trilhas. Por quem morrer? Por quem dobrar os sinos? Por onde caminhar? Será que devemos, ou não, enterrar nossos corações nas curvas de rios?  
            Avançando na leitura deste livro fascinante, em uma outra parte, propõe Bataille: "Existe na base da vida humana um princípio de insuficiência. Isoladamente, cada homem imagina os outros incapazes ou indignos de 'ser'. Uma conversa livre, maledicente, expressa uma certeza da vaidade de seus semelhantes; um falatório aparentemente mesquinho deixa ver uma cega tensão da vida como rumo a um ápice indefinível. A suficiência de cada ser é contestada sem trégua pelos seus próximos. Mesmo um olhar que exprime admiração se agarra a mim como uma dúvida." E novamente somos convocados para um mergulho em nossas convicções, agora, mais abaladas do que nunca. Por que somos tão insuficientes? Os grandes pensadores (artistas, filósofos, poetas, escritores) de alguma maneira expuseram a nossa condição humana, inelutável: solidão. Ler Bataille convence, quase como de um salto, o confronto com o indizível, a incompletude e com aquilo que promete e não cumpre. Nessa medida, temos que atravessar  a solidão. Não existe escapatória. E sedutoramente Bataille nos conduz a questões de autonomia. Diz-nos o quanto ela é incerta, movediça. A condição humana, afirma o autor, nos coloca entre uma certa oposição. Ou seja, entre as incertezas da autonomia rumo à transcendência. Nesse sentido, a vontade humana de autonomia se opõe, num primeiro momento, ao conjunto que nos rodeia, o todo do universo. Mas a autonomia ao se opor corre o risco de definhar. O perigo da renúncia. No entanto, tal estado é passageiro. Por algum tempo. Contudo, o equilíbrio, numa espécie de movimento, se recupera, se faz e se dobra ao conjunto. Ao todo. Há, continua Bataille, o fator angústia. A angústia da submissão do mundo, digamos, aos nossos desejos e vontades. Vontade de ser nós mesmos e colocarmos em ação nossas ações menos transparentes.
            Finalizando...Bataille possui um estilo. Inconfundível. Qualidade excepcional daqueles que, realmente, merecem ser denominados verdadeiros ensaístas. Possuem uma estética que vai além do banal e do comum. Ler Bataille  é como enveredar nas malhas de uma teia finíssima de erudição e, sobretudo, humanidade. Uma literatura que merece ser denominada como tal!

Obs: Este texto foi publicado pela Revista Filosofia (impressa) de no. 132.