sexta-feira, 7 de abril de 2017

Educação:  O Carteiro Imaterial ou  uma reserva de signos sensíveis

Ana Maria Haddad Baptista

            Se pensarmos nas famosas questões que envolvem a recepção das leituras, ou seja, em que medida as pessoas estão lendo? Antigamente se lia mais do que hoje? Por que as pessoas leem tão pouco? Veremos que praticamente todas as épocas se 'equivalem'. Basta um estudo sério e uma pesquisa mais aguçada para que saibamos que a leitura sempre disputou com outras atividades. E mais: a concorrência sempre foi desleal. Os saudosistas de um passado idealizado e, muitas vezes, sem a menor base histórica, decretam, com um prazer imbecil, que ninguém mais lê. As fundamentações são risíveis-ridículas. Entre elas, por exemplo, que a televisão e a internet acabaram com a leitura. Facilmente dedutível que nunca se leu tanto como hoje.
            Carteiro Imaterial de Marco Lucchesi, editora José Olympio, obra lançada recentemente, é um livro de ensaios. Uma das provas materiais de que a  boa literatura se mantém mais viva do que nunca. Erudição que não humilha. Traduz-se em convites pelos percursos do autor dialogando com pensadores, escritores. Lucchesi sabe que os caminhos da literatura, (nas mais diversas dimensões), jamais foram gratuitos.
            Carteiro Imaterial é, como todos os livros de Lucchesi, um livro de ensaios que se particulariza e desestabiliza o leitor. Quer pela pluralidade, quer pela sua habitual poeticidade. Vamos ao título! Carteiro lembra, docemente, mensageiro. A espera de uma carta. De um livro. Ou o inesperado. Que delícia quando um livro enviado por um amigo surpreende! Imaterial? Entre outras leituras possíveis a imaterialidade da obra em questão reside, justamente, na emissão dos signos poéticos que integram um dos fios de unidade do Carteiro Imaterial. Sabe-se: os signos poéticos são aqueles desmaterializados porque nasceram de uma sensibilidade. São os famosos signos espirituais. Os verdadeiros mensageiros da comunicação efetiva. Signos poéticos. Os responsáveis pelas reais intersubjetividades. Nessa medida, o Carteiro desdobra-se em cartas e ensaios no sentido mais estrito. Antecedidos por um sumário composto por verdadeiros ícones (no sentido de Peirce),  em que apontam, para cada parte, o que irão oferecer aos leitores. Destacamos da  'primeira parte', intitulada por Lucchesi de Carteiro Imaterial, Tragédia na Síria, um texto de denúncia. Comovente. O texto é a prova cabal de que o escritor jamais se desliga da vida. Literatura-Vida. O entrelaçamento necessário. "É preciso rever a ideia inicial que se configurou acerca do EI, para enfrentá-lo com parâmetros claros, num terreno ambíguo, no qual já não se pode mais tergiversar, no enfretamento de duas guerras simultâneas: a física e a virtual. Só o tempo será capaz de dizer qual das duas guerras causou maior número de vítimas". E ao longo deste ensaio um diálogo comovente com seu amigo jesuíta Paolo Dall'Oglio. Desaparecido em meio a tentativas corajosas de restabelecer a paz no Oriente.
            O lúdico inteligente,  dissolução de tristezas,  também está presente numa carta sensacional que Lucchesi endereça ao gramático Evanildo Bechara "na ortografia dos ideogramas", ou seja, "(...) alssemos, pois, karo mestre, o paviliao da paz no kampo de batalia da ortografia. Ke cessem alfim as inuteis geras, sange, e orror ke a etimolojia - tiranika! - nos impoe inklemente."
            As armadilhas que cercam a tradução são pensadas no livro. "A tradução é para sempre um gesto incompleto, um horizonte que se afasta, quanto mais próximo se mostra ao observador. Não possui um centro absoluto, capaz de legislar sobre o que se afasta e distancia, e não dispõe tampouco de um código que decida sobre os limites entre contrafação e original". E sobre o assunto Lucchesi possui experiência de sobra. Transita, inclusive na obra em questão, com tranquilidade, pela Torre de Babel.  Árabe, persa, romeno, italiano, grego e mais uma dezena de línguas. Para fazer jus ao Carteiro Imaterial  somente lendo-o. Qualquer apresentação de uma obra rica é lacunar, injusta e inconclusa. Os signos poéticos emanados por esta obra denunciam a essência do autor: originalidade-generosidade-humanidade. E, também, a atitude corajosa dos verdadeiros poetas que acreditam no fluxo e refluxo de influências responsáveis por  transformações. O Carteiro responde, de forma subjacente, uma questão antiga e muito cara a leitores, pensadores, poetas, isto é, em que medida a poesia pode ser reflexiva e dar respostas a questões intelectivas? Ou: em que medida  um poeta precisa do ensaio para questionamentos? Quais seriam as fronteiras entre um ensaio literário e  poesia? Nessa medida, temos no Carteiro uma poesia que pensa por si só.  A real dimensão do quanto a poesia pode dizer mais verdades do que a filosofia, assim como o ensaio não possui uma linguagem de evidências, como muitos poetas já afirmaram, e a poesia, entre outras coisas, é a linguagem da evidência. Enfim, os limites entre o ensaio e a poesia são nebulosos e movediços. A prosa literária sem poesia é um mero documento ou uma narrativa fossilizada.  Nada mais.

Observação: Este texto foi publicado, impresso,  pela Revista Filosofia.

Educação-Literatura-Vida: na aula de 05.04.2017, outono, Letras, meus alunos da Universidade Nove de Julho analisando o Carteiro Imaterial  e declamando poesias de Marco Lucchesi.