segunda-feira, 23 de maio de 2016



Néctar de Letras: Breve viagem por uma  Ilha Voadora e a língua laputar

Ana Maria Haddad Baptista


            Grandes e confiáveis pensadores, de uma forma ou de outra, perceberam que determinadas épocas possuem vazios. Silêncios. Hiatos. Uma das explicações possíveis: nada haveria para ser dito. Mas eis que chega Rudimentos da Língua Laputar,  Marco Lucchesi, Editora Dragão, Rio de Janeiro. Na real: 'O livro por vir'  anunciado por Blanchot. Ou seja: uma obra extraordinariamente inclassificável. Insubordinada a qualquer tipologia. Pode, aparentemente, ser uma gramática. Poema. Romance. Ensaio. Documento. Ouso dizer: Rudimentos da Língua Laputar é uma armadilha. Preparam-se leitores!
            O título altamente provocativo. Que língua seria a laputar? E não há outro caminho se não  o de buscar em outras fontes a origem  da palavra.  Para quem não leu e, também, para quem leu, somos levados às fascinantes Viagens de Gulliver.  Laputa foi uma das ilhas imaginárias visitadas por Swift. Uma ilha flutuante e voadora. Apenas o início de uma  viagem desafiadora pela obra de Lucchesi. Na ilha voadora os habitantes estavam preocupados com a linguagem matemática, musical. Tudo tinha formas geométricas e se reportava a cálculos. No entanto nada era uniforme. Os cálculos da matemática de nada adiantavam na prática. E mais: os habitantes de Laputa viviam distraídos e para dentro deles mesmos. Sempre fora do tempo presente. Esqueciam-se de si. Seres semi-desmemoriados.
            Lucchesi adverte: "Foi árduo o trabalho de recuperar os documentos antigos, que abordavam, embora de modo fragmentado, a estranha língua praticada pelos míticos habitantes da ilha de Laputa [...] Sou o primeiro a reconhecer-lhe a insuficiência, baseado num forte conjunto de lacunas[ leitor, não se iluda..."cada língua guarda em si uma verdade que não pode ser traduzida", disse Guimarães Rosa]. E, no entanto, orgulho-me de haver fixado certos pontos da sintaxe e da morfologia laputar. A que se soma um breve glossário extraído de documentos incertos e disparatados." A partir da advertência do autor o início de uma aparente  gramática (condensada) da língua laputar. Apresenta-nos  as vogais e as consoantes. Os gêneros. Não há, segundo o autor, o artigo definido. E aqui penso: uma língua em que as indefinições prevalecem? Lembremos que a ilha é flutuante!
            As interjeições são poderosos índices, nesta obra, para sabermos a respeito de alguns sentimentos que os habitantes da ilha sentiam. Os estabelecidos por Lucchesi são: Deç: espanto; Kusa: admiração; Heum: dor; Alas: descrença; Fu: nojo; Susp: coragem. O trabalho arqueológico do autor  se traduz, entre outras coisas, na  busca de elementos linguísticos das mais variadas línguas do mundo. Em uso ou desuso.
            E dentre tantas outras coisas que a leitura desta obra possibilita, um dos pontos essenciais: as dimensões de memória. Pelo glossário podemos ter parte da história do que sentiam e faziam os habitantes. Notável a expressão: Deniz: mar interno. Que coerência espetacular! Os habitantes da ilha eram ausentes, imersos em pensamentos, mergulhados, de fato, em mares internos. Memórias, temporalidades, subjetividades. Uma outra dimensão: os jogos temporais do autor. No glossário chamam a atenção substantivos que não são da época da ilha, tais como:  transmissor de rádio, relógio de pulso, filme, computador. Há muitas outras que remetem ao futuro.  
            O leitor atento não tem como escapar da rede ardilosa de Lucchesi: como viviam as pessoas da ilha voadora? O que faziam? E a partir disso, (condição inelutável), constrói as sua histórias. O glossário instiga a imaginar romances, contos, crônicas, poemas. Desafia todos os graus de imaginação. Poeticidade pura. Disposto em colunas possibilita o cruzamento (tudo por conta da imaginação do leitor) das palavras e construções  indefinidas de poesias.

            Mas o exercício de pensamento-linguagem-tempo-memória  proposto pelo autor não concede: a bibliografia imaginária, remete ao futuro. Os livros supostamente usados para a confecção da língua laputar são de 2070, 2067, 2045 e outras datas futuras. A  genialidade sutilíssima desta obra: o autor confessa que a escreveu  há trinta anos. Reviu em julho de 2015 e depois publicou. Nessa medida,  traz um estrato de sua memória para compor uma simultaneidade absoluta de temporalidades /memórias. Possibilita pensar o eterno e o intemporal, como diria Borges. (Lembremos... condenação existencial seriamente postulada por Bergson e Deleuze:  o passado nos  é concedido sob a perspectiva do presente).
             Somente a grandiosidade de uma obra artística possui  simultaneidades cintilantes  de temporalidades.  O projeto gráfico da obra completa a intenção do autor: Tudo que está em laputar é grafado em azul. Um azul indefinido e esvoaçante ( flu tu an te ). Os mares azuis  que separam os continentes ao mesmo tempo que os une pelos Rudimentos da Língua Laputar. Parafraseando Stefan Zweig: de todos os mistérios do universo nenhum é mais profundo que o da criação-artística-literária. Alec, Alétheia .

Obs: Este texto foi publicado pela Revista Filosofia.