sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Educação, liberdade  e autonomia


Ana Maria Haddad Baptista



Entrevista que concedi para a revista da Academia Brasileira de Letras e publicada, impressa,  em novembro de 2017.

Há vinte  anos da morte de Paulo Freire  qual o balanço de sua obra nas escolas brasileiras, no entendimento segundo o qual a educação é essencialmente prática da liberdade?

As escolas brasileiras estão contextualizadas em um universo mais amplo no cenário mundial. Sabemos, em especial, se pensarmos nas lúcidas análises de Bauman, Hobsbawm e outros pensadores, que todas as hierarquias, não somente as escolares,  estão completamente fragilizadas e isso, a meu ver, é muito bom. Implicam numa desestabilização que, por sua vez, indicam incertezas. Pensando com Edgar Morin e Bachelard:  nada pior do que as certezas.
Creio que em relação às escolas brasileiras Paulo Freire deu e nos dá uma grande contribuição visto que  tem sido reinventado, por exemplo, no ensino superior e em outras instâncias da Educação. Observo, em minha prática, uma grande mudança, embora, muitas vezes, quase invisível, em relação à postura de professores e alunos. Ambos querem mais liberdade para pensar, ousar  e encarar os desafios que a liberdade nos possibilita. Por um outro lado, sem dúvida, existem as resistências. Educação como prática da liberdade exige um despojamento que amedronta e implica, logicamente, em responsabilidades as quais muita gente não tem coragem de enfrentar. Mas meu balanço é bastante otimista. Creio muito nas adversidades. Verdadeiros antídotos contra o estabelecido que desde sempre foi inimigo íntimo da humanidade em todos os períodos históricos.

Construir escolas para não construir prisões no futuro, como alguém já disse...

Construir escolas que efetivamente possibilitem a liberdade de expressão, a liberdade de sermos o que somos,  a participação solidária ou  cairíamos em prisões disfarçadas. E elas existem. Conheço muitas escolas, públicas e privadas, de todos os graus, que possuem grades, diretores com apitos na boca, uso obrigatório de uniformes,  câmeras vigilantes, inclusive, em salas de aula. Peixes aprisionados em aquários. Aves engaioladas. Proíbem o uso de celulares e o acesso a bibliotecas, quando elas existem, é cheio de regras e burocracias. Os 'inspetores de alunos' são vigias  uniformizados. Intimidam com o  olhar.  Plantas e flores artificiais. Desprovidas de vida. Empoeiradas. Os espaços de alimentação, 'gelados', verdadeiros reflexos de refeitórios existentes em presídios. Reina uma atmosfera em que predominam o medo, a repressão e a subordinação.
Tais escolas, via de regra, estimulam 'grades curriculares' que inviabilizam projetos que instiguem o instante, a inventividade e criatividade de professores e alunos. Nessa medida, somente escolas inovadoras e comprometidas  com a real prática e exercício da liberdade poderiam, sim, subtrair, num futuro muito próximo, a construção de mais presídios.  Caso contrário, se pensarmos seriamente e, sobretudo, com Paulo Freire e Foucault, as escolas seriam uma espécie de extensão carcerária. Jaulas que domesticam e, apenas, arruínam o pensamento e o corpo.

Com taxas de analfabetismo importante e múltiplos desafios na formação de leitores, como repaginar a leitura do livro do mundo para jovens adultos?


Esta é uma questão muito delicada. Complexa. Na minha prática docente tem sido central. Uma das dimensões de minhas pesquisas. A formação de leitores envolve variáveis sutilíssimas.
Primeiramente, a perversa ilusão de que a relação entre leitor e livro seja de causa e efeito. Em outras palavras...não basta que uma criança cresça junto a bibliotecas para que se garanta um futuro leitor. Conheço dezenas de pessoas, bastante próximas a mim, que cresceram entre livros e não gostam de ler. Sabemos que milhões de pessoas jamais tiveram acesso a eles até a juventude. Hoje são excelentes leitores. Tornaram-se grandes escritores como é o caso de Saramago.
Uma outra ilusão é pensar que antigamente se lia mais do que hoje. Objetivamente impossível se pensarmos com mais cuidado. Bem ou mal o cenário mundial aponta que o nível universal de alfabetizados aumentou. Apesar de não termos atingido o nível ideal no Brasil, luta-se muito para isso.
Gosto de lembrar Sêneca em Da tranquilidade da alma. Denuncia, há dezenas de séculos, as bibliotecas inertes, apenas enquanto ostentação e enfeitadas com estátuas.  Goethe, em Conversações, nos últimos dez anos de sua vida,  lamenta, com Eckermann, a ausência de referenciais clássicos entre os jovens. Seféris, nos anos 50 do século XX,  critica a falta de referenciais de seus contemporâneos.
Uma outro equívoco grave em relação a leituras é a comparação. Em qualquer situação um perigo. As pesquisas, em geral, apontam, maldosamente, que os brasileiros leem pouco em relação a outros países. Provavelmente não leram O inconformista de Luc Ferry e fugiram de análises inteligentes propostas pelos escritores que acreditam na literatura. Os raros que optaram por literatura-vida e  resistem à sedução do canto da sereia.
Nessa medida, questiono enfaticamente: quais foram as metodologias empregadas para se afirmar que o brasileiro lê pouco? Desde quando a venda de livros pode garantir a real leitura? Comprar um livro é uma coisa. Ler é outra.
 Outro equívoco: há um grande fator, talvez, o principal, o da qualidade dos livros que são lidos. Um livro de quinhentas páginas, necessariamente, não é melhor do que um de 40 ou 50. Sabemos que há livros de algumas dezenas de páginas que nos obrigam a reflexões que perduram por anos. Até por uma vida inteira. Um poema de algumas páginas pode dizer muito mais que trezentas! E a releitura? De tempos em tempos, releio, integral ou parcialmente, as obras pelas quais sou apaixonada. 'Reservas poéticas', consequentemente, 'reservas de vida'. Se mudamos a cada segundo... cada releitura é uma nova leitura. Costumo citar a teoria da Relatividade, ou seja, lembrar que a primeira versão, publicada em 1905, tinha em torno de dez páginas. Sabe-se do impacto epistemológico que abalou as grandes certezas e continua desafiando até hoje  questões que envolvem as ciências e a poética.
Em  minha prática docente que remonta mais de quarenta anos, jamais subtraí de meus alunos o encontro com os livros. Sempre tendo em vista os fatores apontados. Incluo, para completar a resposta, que a escola pode e deve possibilitar o encontro com a leitura, inclusive, por meio de aparatos tecnológicos.
No entanto, talvez, um ponto chave: temos que aumentar as expectativas em relação aos nossos alunos. Infelizmente a maioria dos professores não confia na capacidade de leitura dos estudantes e sabem, apenas, lamentar. A maioria de meus alunos, das mais variadas formações, de graduação ou pós-graduação, sempre acompanharam as leituras indicadas por mim. Recebo, para minha felicidade, dezenas e dezenas de retornos de ex-alunos lembrando da importância dos livros que leram comigo e ressaltando que hoje são leitores.
 Finalmente: os acusadores de que seus alunos nada leem...estão efetivamente lendo alguma coisa? Praticam as necessárias estratégias que levam à sedução pela leitura? Em que medida  são apaixonados por literatura?
Literatura de verdade, diferentemente de outras linguagens que nos assediam a todo momento, exige de seus leitores o encontro com o ausente. Portanto: introspecção, coragem, recolhimento. Paixão. Solidão.
 Leitura exige ritmo. Tão caro a Octavio Paz, Deleuze e pensadores lúcidos. Acompanhar a musicalidade do texto. Em verso ou prosa. Inclusive, em textos de  Filosofia, História, Física, Matemática e outros. A melodia textual, quando interiorizada, gradual e profundamente durante a leitura, determinará, mediante necessidades subjetivas, a velocidade e a verticalidade da leitura. Movimento intransferível. Incomensurável.


A senhora vem se dedicando nos últimos anos a uma instigante aproximação dos conceitos de tempo e liberdade na filosofia de Paulo Freire.


Meu primeiro encontro com Paulo Freire foi em Educação como prática da liberdade. Fiquei, à época, fascinada pelas concepções de temporalidade que ele apontava. Quase quarenta anos depois, por questões contextuais, retornei a suas obras e tive o mesmo impacto! Decidi ir mais a fundo. E uma das primeiras reflexões de Freire, na obra citada, é a respeito da temporalidade humana. Faz uma belíssima comparação entre o homem que, por sua vez, é um ser intratemporal em relação ao gato, 'afogado', em sua temporalidade unidimensional. Freire nos fala em duração e em nota de rodapé, quase invisível, cita Bergson. Nessa perspectiva, sabemos, inclusive pela leitura de Deleuze, que duração é, sobretudo, liberdade e intuição! Bergson contesta na virada do século XIX para o XX  os determinismos! Suas concepções de tempo  são profundas à medida que possibilitam mudanças e, claro, a transformação. A partir de Bergson, Deleuze, Ricoeur, Mia Couto encontrei em Freire o tempo em sua transitividade, mudança, transformação que estruturam verticalmente a concepção de liberdade proposta pelo nosso grande educador.


Por outro lado a senhora parte da abordagem de Paulo Freire, radicada num sensível gradiente poético.

Freire, por incrível que pareça, é acusado, por alguns,  de usar em suas obras uma linguagem 'muito didática'. Sempre desconfiei de tal acusação. Ao analisar as categorias de temporalidade, percebi, com alegria, nas primeiras páginas de A Pedagogia do Oprimido, a musicalidade e os ritmos que me lembravam  o romance-poema Iracema  de Alencar. Além de uma cadência textual similar ao do  conto-poema Desenredo de Guimarães,  os silêncios dos oprimidos retratados, em Vidas Secas, por Graciliano Ramos. Ecos de Morte e Vida Severina de João Cabral. Fiquei muito intrigada com isso. Os textos de Freire possuem uma impressionante poeticidade. Orações justapostas. Predomínio da coordenação. Parti, desta forma, para as entrevistas dadas por ele e indaguei pessoas que, de fato, o acompanharam pós-exílio. Precisava saber, a qualquer custo, a respeito de suas leituras. E os meus pressupostos se confirmaram: Paulo Freire foi um grande leitor de romances, contos e poesias, além de ensaios voltados para a literatura. Era fascinado por metáforas. Sou integrante de um projeto da Comunidade Europeia chamado GLOCADEMICS. Juntamente com a coordenadora, escrevo um livro em que minha parte analisa detalhadamente a poética e o tempo-memória em Paulo Freire.

O Brasil dispõe de uma reserva invejável de educadores de envergadura  ( Anísio Teixeira ,Francisco Venâncio , Darcy Ribeiro). E no entanto , o que há de errado com o sistema?

Serei muito breve. Excesso de memória, tal qual Funnes, o memorioso de Borges. Excesso de importação e comparação de modelos educacionais. O Brasil, como todos os países, precisa, de uma vez por todas, ser compreendido  em sua pluralidade. Valorizar nossa diversidade. Mas, creio eu, acima de tudo, precisamos de educadores apaixonados por aquilo que fazem. Os professores, afirmava Paulo Freire, podem muito mais do que imaginam.  Infelizmente... a maioria deste planeta faz o que não gosta. Nessa medida, aumento de  salários, cursos de capacitação e outras estratégias que visam melhorar nosso sistema caem no vazio. Portanto, a questão é muito mais aguda do que aparenta.

Qual a agenda mais imediata para a formação de uma cidadania plena, republicana e solidária para os próximos anos?

Reestruturar, urgentemente, o Sistema Educacional em todos os graus. Escolas públicas e privadas. Nessa reestruturação ter, em primeiro plano, a bela imagem de Sartre na leitura de Giacometti: como fazer um homem com pedra sem petrificá-lo? Penso em escolas impregnadas de movimentos circulares. Espaços, em sua totalidade, cuidados pelos próprios alunos. Desde a alimentação até a limpeza. Sem hierarquias rígidas. Escolas envolventes onde provas e chamadas seriam dispensáveis. Que exalem beleza espacial, poesia, paixões alegres. E o melhor: eu conheço, de perto, algumas escolas assim. São possíveis. Desnecessário um investimento econômico muito grande. Ressalto que li, recentemente, um livro cujo autor é professor de uma das universidades americanas mais prestigiadas e ricas  do mundo. Relata o alto grau de infelicidade e depressão da maioria de seus estudantes.