sexta-feira, 14 de outubro de 2016



Nobel 2016

Ana Maria Haddad Baptista

         Desde os felizes tempos em que os bichos falavam com a humanidade... os prêmios existiram. Assim como os critérios para entregá-los. Inútil, sabe-se disso, chegar-se a critérios totalmente justos. Um prêmio deveria se pautar pelo qualitativo. E como avaliar o qualitativo? Qualitativo (o bom e velho Bachelard) não possui peso e, muito menos, medidas.
          O  Nobel é um prêmio importante (sempre tive desconfiança). No entanto, somente para ficarmos com um exemplo em literatura, lembremos que um Proust, por exemplo, não ganhou. E muitos e muitos que deveriam ter obtido o Nobel jamais viram nada.
         De repente Bob Dylan... "para feliz escândalo popular", como diria Guimarães Rosa, uma expressão da música, ganha o prêmio em literatura! E os argumentos, entre outros recheados de hipocrisia, de que a música de Bob é extremamente poética! Ora senhores! A verdadeira música deve se pautar, inclusive, pelo grau de poeticidade a que se propõe! Bela novidade!
         Octavio Paz, há dezenas de anos, em seus belos ensaios que integram Signos em Rotação, (um clássico obrigatório), analisa como ninguém questões como musicalidade, ritmo, sonoridades, cores, aromas e outros elementos que estão contidos na poética. O que seria de um romance sem musicalidade? Um relatório!
         Ora! Atribuir um Nobel em literatura a um compositor-cantor (de valor, sem dúvida) é, realmente, um escândalo estético que abre precedentes perigosos! E o que é pior: os famosos midiáticos, vulgo tudólogos brasileiros, aprovaram a Academia Sueca como verdadeiros cordeiros. Totalmente submissos à decisão! E, ainda, elogiando! Achando que foi um avanço! Enquanto isso Mia Couto, Adonis, António Lobo Antunes, Milan Kundera e outros...permanecem na fila de espera!
         Imagino Sartre, um dos poucos que teve a coragem de chutar o Nobel, rindo sarcástica e causticamente de nosso amado autor de Cem anos de solidão! Brindando com Simone de Beauvoir sua declaração final em Que é literatura? Ou seja..."Se a literatura se transformasse em pura propaganda ou em puro divertimento, a sociedade recairia no lamaçal do imediato, isto é, na vida sem memória dos himenópteros e dos gasterópodes. Certamente, nada disso é importante: o mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem".
         Em tempos de aridez, em todas as dimensões, nada como ler Meus Prêmios de Thomas Bernhard. Livro que expõe, ironicamente, os diversos critérios que regem a miserabilidade de prêmios, condecorações, homenagens e outros da mesma laia!

segunda-feira, 10 de outubro de 2016




Notas sobre a inexatidão da matemática

Nota importante: este texto foi publicado pela Revista da Academia de Letras, setembro/no.88/2016.

Ana Maria Haddad Baptista


O imaginário
{nuvem   bosque   pensamento}
é o atalho cristalino da matemática
Marco Lucchesi

O matemático é o único em nosso círculo a quem receamos desagradar.
Goethe


Matemática e  imaginário

            Ao lermos o famoso diálogo entre Guimarães Rosa e Günter Lorenz, realizado em 1965, percebe-se, entre tantas outras coisas, a abrangência da linguagem matemática. O nosso grande mestre da literatura faz uma leitura, à época, sobre o futuro da Europa e da humanidade nas seguintes palavras: "É como uma equação com várias incógnitas. A Europa é pequena, mas seus habitantes são ativos e, além disso, têm a seu favor uma grande tradição. E entretanto os europeus não têm qualquer influência sobre essas incógnitas que determinam o futuro de seu continente. O 'x' e o 'y' desta questão decidirão o amanhã, tanto é assim que quase já se pode dizer hoje. A América Latina talvez não seja a incógnita principal, o 'x', mas provavelmente será o 'y', uma incógnita secundária muito importante. Pela matemática, sabe-se que uma equação não se resolve se uma segunda incógnita não for eliminada. Suponhamos agora que a América Latina seja a tal incógnita 'y'. Com isso a Europa está em um ponto culminante para o seu futuro. E não estou falando apenas das necessidades e do potencial econômico de meu continente. Você sabe que para nós, os latino- americanos, nos sentimos muito ligados à Europa. Para mim, Cordisburgo foi sempre uma Europa em miniatura. Amamos a Europa como, por exemplo, se ama uma avó. Por isso espero que a Europa reconheça a equação e leve em conta o 'y' " [1]. E com isto me vem o prazer de pensar as incógnitas, as variáveis, os conjuntos infinitos e tudo que me carregue às incertezas, ao imponderável, aos paradoxos, às impossíveis verdades e, finalmente, às indeterminações. Porque levam-me ao grande reino das   improváveis. Das inconstâncias. E que, no final das contas, são sempre próximas do que é  imprevisível  e das  irresponsabilidades contidas na liberdade. Onde o reino de variedade da vida se mostra mais rica e as grandes novidades brotam. Descobertas inesperadas. Assim como prefiro pensar na intensidade inexata de uma qualidade do que na pretensa (sempre) exatidão da quantidade.
            Gosto de lembrar das equações de Dirac, na leitura dos grandes lúcidos, uma equação de primeira ordem. Adensa a questão da probabilidade. Enfraquece a determinação. Desafia as in-certezas.  Na leitura poética de Bachelard: "as matrizes solidarizam dialeticamente os fenômenos propagados dando a cada um o que lhe cabe, fixando exatamente a sua fase relativa. Em vez da melodia matemática que outrora acompanhava o trabalho do físico, é toda uma harmonia que romanceia matematicamente a propagação" [2]. E, desta perspectiva, o matemático, na verdade, deve ter a direção de um quarteto. "Em suma, a arte poética da Física faz-se com números, com grupos, com spins, excluindo as distribuições monótonas, os quanta repetidos [3] .
            As invariáveis, as constantes, conjuntos finitos, equivalências, em grande parte, me amarguram. Embora saibamos  necessárias para a estruturação, sob o ponto de vista da física, do real. Mas já apontam, via de regra, para um resultado quase final.
            A matemática permeia, de longe e de perto, o universo plural  que nos rodeia. "O caminho e os caminhos...Dezenas de viagens por todo o país, centenas de fitas cassete gravadas, milhares de metros de fita. Quinhentos encontros; depois parei de contar, os rostos desapareceram da memória, só as vozes ficavam" [4]. Entre os universos, claro, em diversos graus, o da literatura. Prosa. Verso. Quantidade.  Qualidade.


            Na maioria das vezes, a matemática é percebida como uma área isolada e reduzida somente a números e cálculos. Isso faz com que estudantes e pessoas em geral tenham um verdadeiro horror a ela. A matemática, ainda nos dias de hoje, é a vilã. Um primo indesejável. Professores da área (a maioria) fazem questão de agudizar o terror pelos cálculos imediatos. Complicam as avaliações para embaralhar os estudantes. E, com isso, adicionando outros fatos e multiplicando as variáveis, apesar dos esforços de muitos lúcidos em colocá-la em permanente diálogo com outras áreas, a situação ainda é bastante precária em todas as dimensões.  
            Naturalmente existem muitas exceções. Lembremos de Ubiratan D'Ambrosio em sua luta constante por uma matemática humanizada. Buscando, sempre, o diálogo necessário entre a matemática e outras áreas do conhecimento.
            Lembremos, com muita alegria e satisfação,  de Inácio de Loyola Brandão quando nos relata (em tom irônico e delicioso) que, em grande parte, tornou-se um escritor graças a um professor de matemática.  Quando, em uma entrevista, lhe perguntaram porque era um escritor declara [5]: "Escuto essa pergunta muitas vezes. A verdade é que tive uma experiência fantástica. Eu tive grandes professores. Um deles me marcou profundamente." E relata um dos motivos pelos quais deve sua carreira de escritor a um professor. Brandão diz que quando cursava, em sua época, o científico (atualmente o ciclo denominado ensino médio) teve uma grande experiência. Embora fosse uma nulidade em química, física, matemática e biologia a escolha pelo científico se deu por uma opção de comodidade ( o autor declara que a fila, no último dia da matrícula, do científico era bem menor e ele não queria perder um jogo de futebol de salão) e, desta forma, optou pelo curso científico.
            Declara Brandão que no último ano do curso teve que fazer um exame oral de matemática. Os famosos exames orais de antigamente em que aluno e professor tinham que se encarar frente a frente. Observe-se, de acordo com o escritor, que o curso cuja duração era de  3 anos, ele havia feito em 5. O professor de matemática, Ulisses, "era severíssimo, bravíssimo, mas muito irônico" [6].  O professor perguntou ao escritor de quanto ele precisava para passar. E ele precisava 'apenas' de 9,7. O professor fez uma proposta: ou tudo ou nada! Em outras palavras:  0 ou 10!  Brandão, que nada tinha a perder, topou a parada. O professor Ulisses disse que lhe daria para resolver uma equação muito difícil que  teria resolvido em sala de aula enquanto Brandão lia um livro ( e o autor confirma dizendo que era Moby Dick). E, nessa medida, o professor coloca a equação na lousa. Havia um público. "Um grupo de meninas, todas lindas, frescas e perfumadas, que ficaram me olhando" [7]. E de repente a equação na lousa para ser resolvida. Brandão confessa que não tinha noção de como iria resolver aquilo. Mas teve uma ideia. Colocou no quadro todos os símbolos matemáticos que lhe vinham à memória. Raiz quadrada, chaves, colchetes, logaritmo de senos e cossenos, triangulozinhos e tudo que conhecia em termos de linguagem matemática. Teve, inclusive, a audácia de chegar a um resultado.
            Concluído o exercício chamou o professor Ulisses que olhou para o quadro  (parecia, segundo Brandão, um livro de matemática ilustrado). Após o professor ter conferido o resultado como um todo colocou, (no próprio quadro) , a nota 10. E nisso as meninas ficaram maravilhadas! Comenta que até hoje as meninas daquele tempo, hoje vovozinhas, lembram o fato (o professor Ulisses morreu). Brandão, naturalmente, não acreditou na nota. Mas o professor confirmou: 10! E, finalmente, a sentença definitiva do mestre [8]: "É 10, 10 pela fantasia, 10 pela invenção, 10 pelo delírio, 10 pela imaginação. Vai embora, Ignácio, porque o seu mundo não é o da exata. Teu mundo é o da imaginação." Desde aquele ano (1956), segundo o escritor, vive da imaginação e da fantasia e é isso que dá grande prazer.
            Como podemos avaliar a atitude do professor Ulisses? Parece quase uma fantasia de Brandão o ocorrido, visto que estudou em uma época em que as concessões eram quase impossíveis. No entanto o professor de matemática conseguiu se despojar de várias máscaras e intuir que estava diante de um possível escritor que, sem dúvida, veio a se tornar Ignácio de Loyola Brandão. O espantoso na atitude do professor é que mesmo sendo da área de matemática, percebeu que ali estava um caso potencial de literatura. Por um outro lado, o professor Ulisses desprezava, pelo relato do escritor,  a imaginação, inexatidão e, sobretudo, a poesia da matemática.

Da qualidade, da quantidade, da diferença: a inexatidão

            Alterna-nos Bachelard de que uma das grandes infelicidades do filósofo da qualidade é se ver obrigado e estar submetido a uma linguagem que "exalta a clareza das qualidades nitidamente quantificadas como número e extensão" [9]. Em diversos momentos do conjunto de suas obras, declara que   devemos  adotar como um postulado da epistemologia o processo inacabado do conhecimento. Na verdade, não podemos atingir, jamais, a totalidade de um conhecimento, inclusive, nas denominadas ciências exatas. Há uma impossibilidade diante do real de o apreendermos em seu todo. E com isso nada escapa das aproximações. Inclusive a matemática. O conhecimento está sempre em movimento, fluxo e daí, entre outros fatores, a reorganização diante do real. Como se o real fosse uma dimensão insubmissa à pretensa exatidão.  Continuamente inesgotável! Diante do exposto há uma questão, bastante intrigante, ou seja, a famosa discussão, mas, sempre atual, em torno de quantidade e qualidade. Ora, num primeiro momento somos seduzidos a pensar que a quantidade expressa a qualidade. Grandes pensadores já pensaram nisso (entre eles Bergson). Mas como escapar de tal 'armadilha' ? A qualidade nos remete ao conceito de qualidade pura, pode-se pensar na apreensão direta da musicalidade, na apreensão direta do tempo, da memória e, em especial, pensarmos, na delicadeza conceitual,  da primeiridade de Peirce. O inanalisável. Intocável. No entanto, se caminharmos pelas trilhas (verdadeiras melodias) de Bachelard, nada escapa da admissão de  que a qualidade pura possui em si uma característica que a leva à classificação [10]. Conclui-se, parcialmente, que a percepção não possui acuidade e nem exatidão que possam justificar a classificação no qualitativo, se pensarmos, de acordo com Bachelard, que o contínuo qualitativo se traduz pela mudança. O nosso grande pensador vai mais longe quando declara que a matemática que insiste em submeter as relações sensíveis a uma adaptação à medida é, simplesmente, pobre. E no entanto, adverte, a medida é traduzida como a base da aritmetização da experiência, o que, de certo prisma, justificaria a ontologia científica, que por sua vez não justifica sua solidez devido à pobreza de seu princípio.
           


           
Das possíveis conclusões

            Lembro, não sem alguma amargura, da advertência de Sabato. Ou seja, de que estamos condenados a contemplar verdadeiras grosserias das encarnações das formas puras (em especial as colocadas por Platão). As grosserias estão em nosso universo cotidiano, e como se sabe, fluente e cheio de contradições. As pretensas ciências exatas do peso, dos cálculos e da medida, a todo momento estão nos alertando, verdade seja dita, que existem muitas ilusões, erros e incertezas diante das cobiçadas exatidões. A magnitude de um pensador, seja ele de qualquer área do conhecimento, consiste em admitir de que estamos muito distantes de um conhecimento acabado e já concluído. O que não invalida, certamente, a leitura do que nos é permitido, do real. Nessa medida, a matemática é muito mais inexata do que se supõe.
            Perceber a matemática em sua grandiosidade e abrangência ainda é um desafio. A poesia da matemática que está naturalmente contida nos meandros de todas as linguagens. Adverte-nos Paz, com dezenas de exemplos, que a imagem poética, aquela que preserva a pluralidade das significações, sempre conjuga  e aproxima realidades opostas. A imagem, o diferencial da imagem na extensão de sua intensidade que dá o contorno maior à qualidade, se traduz em aproximar realidades separadas e distantes entre si. A submissão da unidade à pluralidade do real como nos lembra Paz.  E mais: de tal submissão não escapam os conceitos e as tais das leis da ciência. O grande problema das ciências, do discurso racional,  é não perceber que existe uma unidade estranha no discurso poético, mas que se traduz pela intensidade do sensível, como, por exemplo, no seguinte fragmento de poema:

Nas centenas de franjas das  águas  amargas de um rio esquecido em sua curvatura
milhares de cavalos desmemoriados
milhões de crinas azuladas
cintilam?
sob o brilho incomensurável  das galáxias matemáticas. [11]

            Pensamos ( e isso não se traduz em nenhuma novidade) que seria urgente a recuperação de leituras, em todos os âmbitos, que, finalmente, unissem sensibilidade e razão. Parece-nos que somente desta forma poderemos sonhar com a fluidez da liberdade. Sob uma equação esconde-se uma resolução que tenta provar o desconhecido. A poesia das linguagens bifurcadas permite admirarmos o poder oculto das equações ao descortinar certas propriedades do universo e da poesia matemática que ressoam na incapturáveis  fendas do real.






[1] Guimarães Rosa,  Ficção Completa, Volume I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 61.
[2] Gaston Bachelard, Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p.20.
[3] Idem.
[4] Svetlana  Aleksiévitch, A Guerra não tem rosto de mulher. Tradução de Cecília Rosas. São Paulo: Cia das Letras, 2016, p.45.
[5] Ignácio de Loyola Brandão, Ofício da Palavra. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 115.
[6] Idem, p. 116.
[7] Ibidem, p. 116.
[8] Op. cit., p. 117.
[9] Gaston Bachelard, Ensaio sobre o conhecimento aproximado, op. cit., p. 37.
[10] Nas palavras de Bachelard: "Afirmar o caráter primordial da ordem é reavivar uma velha discussão. Embora em aritmética os defensores da precedência do número ordinal sobre o número cardinal tenham apresentado argumentos muito consistentes, é costume referir a ordem ao número. Por isso na matemática o conceito de medida é introduzido como conceito básico, e essa ciência é definida como a ciência da quantidade, discreta ou contínua" idem, p. 34.
[11] Marie-Joulie Chamie,  Cavalos sem memória.  Lisboa: Apenas Editora, 2016, p. 81.