quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Néctar de Letras e Imagens: Temporalidades, Memórias e Literatura

Ana Maria Haddad Baptista




A categoria tempo não pode ser vista somente a partir de uma perspectiva única. O tempo comporta, conforme já observaram diversos pensadores, muitas outras formas de abordagens. Desta maneira, sabe-se, tudo que diz respeito ao tempo, ao longo da história do homem, afeta desde recortes epistemológicos a questões relacionadas com o  nosso cotidiano.
A forma pela qual o Ocidente concebeu e concebe  o tempo recebeu uma grande influência dos gregos antigos. A consciência e o conhecimento dos mecanismos que envolvem a apreensão do tempo são importantes à medida que esclarecem outros aspectos pouco observáveis de nossa realidade, como por exemplo, a forma pelo qual nosso Universo é visto nos dias atuais, assim  como a sociedade contemporânea se pautou em mecanismos que parecem engolir os nossos segundos, minutos, horas, dias, semanas.
O tempo, sob nossa perspectiva, pode ser enfocado de maneira mais abrangente se, também, estiver ligado às questões de memória. Portanto, tempo-memória  são categorias, a nosso ver, totalmente, indissociáveis, sob pena de uma perda irrecuperável no que se refere à sua  estreita ligação.
Mas... afinal... o que é o tempo-memória? Mesmo correndo um grande risco, em se tratando de conceitos,  é multiplicidade. Pode-se pensar, por exemplo, no tempo enquanto uma categoria objetiva. Desta forma, sucessividade, quantidade, horizontalidade e outros conceitos que estejam relacionados na mesma direção . O tempo objetivo é o tempo que  determina as nossas ações mais imediatas, o que, na verdade, manipula o nosso dia-dia. É o famoso tempo dos relógios, perversamente, para os olhos da atualidade, o soberano que comanda nossa vida social.
Contudo, o tempo pode também ser visto sob uma ótica completamente distinta em vez de padrões mensuráveis. Pode ser abordado enquanto uma categoria subjetiva. Ou seja, a partir de uma perspectiva que leve em conta as diferenças pessoais de cada um. Nessa perspectiva, o ritmo do tempo não possui elementos de quantificação. Ele é medido de acordo com as experiências de cada pessoa.  Estaria ligado às sensações internas de cada um de nós. É o famoso tempo enquanto duração. Duração lembra Bergson. Liberdade. Subjetividade. Temporalidade.

Hesíodo: um poeta grego

Quem teria sido um dos primeiros a falar do tempo e da memória no Ocidente? Que tipo de literatura teria feito tal referência? Um poeta grego bastante conhecido foi Hesíodo . De acordo com Jaa Torrano “a poesia de Hesíodo é arcaica (...). Na afirmação segundo a qual a poesia de Hesíodo é arcaica, devemos levar em conta o sentido historiográfico da palavra arcaico (‘Época Arcaica’).”[1] O autor prossegue declarando: “Os estudiosos designaram Arcaica a Época em cujos umbrais Hesíodo viveu e compôs seus cantos. Na Grécia, os séculos VIII-VII a.C. testemunharam a germinação ou transplante de instituições sociais e culturais.”[2]
Vejamos (uma parte) de um poema de Hesíodo:





Poêmio: hino às Musas

Pelas Musas heliconíades  comecemos a cantar.
Elas têm grande e divino o monte Hélicon,
em volta fa fonte violácea com pés suaves
dançam e do altar do bem forte filho de Crono.
Banharam a tenra pele no Permesso
ou na fonte do Cavalo ou no Olmio divino
e irrompendo com os pés fizeram coros
belos ardentes no ápice do Hélicon.
Daí precipitando-se ocultas por muita névoa
Vão em renques noturnos lançando belíssima voz,
Hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de áreas sandálias,
Atenas de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de área coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto, Crono de curvo pensar,
Terra, o grande Oceano, a Noite negra
e o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.


Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto
quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divnino.
Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas
Musas olimpíades, virgem de Zeus porta-égide:
“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.
Assim falaram a virgens do grande Zeus verídicas,
Por cetro deram-me um ramo, a um louveiro viçoso
colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado,
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por último sempre cantar.
Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?

Eia! Pelas Musas comecemos, elas a Zeus pai
hineando alegram o grande espírito no Olimpo
dizendo o presente, o futuro e o passado
vozes aliando. Infatigável flui o som
das bocas, suave. Brilha o palácio do pai
Zeus troante quando a voz lirial das Deusas
espalha-se, ecoa com a cabeça do Olimpo nevado
e o palácio dos imortais. Lançando voz imperecível
o ser venerando dos Deuses primeiro gloriam no canto
dês o começo: os que a Terra e o Céu amplo geraram
e os deles nascidos Deuses doadores de bens,
depois Zeus pai dos Deuses e dos homens,
no começo e no fim do canto hineiam as Deusas
o mais forte dos Deuses e o maior em poder,
e ainda o ser de homens e de poderosos Gigantes.
Hineando alegram o espírito de Zeus no Olimpo
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide.

Na Piéria gerou-as, da união do Pai Cronida,
Memória rainha nas colinas de Eleutera,
para oblívio de males e pausa de aflições,
Nove noites teve uniões com ela o sábio Zeus
longe dos imortais subindo ao sagrado leito.
Quando girou o ano e retornaram as estações
com as mínguas das luas e muitos dias findaram,
ela pariu nove moças concordes que dos cantares
têm o desvelo no peito e não triste- ânimo,
perto do ápice altíssimo do nevoso Olimpo,
aí os seus coros luzentes e belo palácio.
Junto a elas as Graças e o Desejo têm morada
nas festas, pelas bocas amável voz lançando
dançam e gloriam a partilha e hábitos nobres
de todos os imortais, voz bem amável lançando.


Elas iam ao Olimpo exultantes com a bela voz,
imperecível dança. Em torno gritava a terra negra
ao hinearem, dos pés amável ruído erguia-se
ao irem a seu pai. Ele reina no céu
tendo consigo o trovão e o raio flamante,
venceu no poder o pai Crono, e aos imortais
bem distribuiu e indicou cada honra;
isto as Musas cantavam, tendo o palácio olímpio,
nove filhas nascidas do grande Zeus:
Glória, Alegria, Festa, Dançarina,
Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste
e Belavoz, que dentre todas vem à frente.
Ela é que acompanha os reis venerandos.
A quem honram as virgens do grande Zeus
e dentre reis sustentados por Zeus vêem nascer,
elas lhe vertem sobre a língua o doce orvalho
e palavras de mel fluem da boca. Todas
as gentes o olham decidir sentenças
com reta justiça e ele firme falando na ágora
logo à grande discórdia cônscio põe fim,
pois os reis têm prudência quanto às gentes
violadas na ágora perfazem as reparações
facilmente, a persuadir com brandas palavras.
Indo à assembléia, como a um Deus o propiciam
pelo doce honor e suas reuniões se distingue.
Tal das Musas o sagrado dom aos homens.
Pelas Musas e pelo golpeante Apolo
há cantores e citaristas sobre a terra,
e por Zeus, reis. Feliz é quem as Musas
amam, doce de sua boca flui a voz.
Se com angústia no ânimo recém-ferido
alguém aflito mirra o coração e se o cantor
servo das Musas hineia a glória dos antigos
e os venturosos Deuses que têm o Olimpo,
logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os desviaram os dons das Deusas.

Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto,
gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos,
os que nasceram da Terra e do Céu constelado,
os da Noite trevosa, os que o salgado Mar criou.
Dizei como no começo Deuses e Terra nasceram,
os Rios, o Mar infinito impetuoso de ondas,
os Astros brilhantes e o Céu amplo em cima.
Os deles nascidos Deuses doadores nascidos de bens
como dividiram a opulência e repartiram as honras
e como no começo tiveram o rugoso Olimpo.
Dizei-me isto, Musas que tendes o palácio olímpio,
dês o começo e quem dentre eles primeiro nasceu.

O poema em referência é parte do famoso e clássico texto chamado de Teogonia, A Origem dos Deuses, de Hesíodo. Foi traduzido, diretamente do grego, por Jaa Torrano. Este poema retrata, entre outras coisas, o nascimento das deusas da memória. As deusas da memória são consideradas as prolongadoras da memória.  De alguma maneira este poema marca o nascimento do tempo, o nascimento do universo, sob uma ótica completamente distinta em relação aos dias atuais.



O texto a seguir descreve, introdutoriamente, algumas características do povo grego:


            Entremos na Grécia com o povo grego.
            Este povo – que a si mesmo se chamava os Helenos – fazia parte, pela língua (não nos arrisquemos a falar da raça), da grande família dos povos a que chamamos indo-europeus. A língua grega, com efeito, pelo seu vocabulário, pelas suas conjugações e declinações, pela sua sintaxe, é próxima das línguas faladas antigamente e hoje ainda na Índia e da maior parte das que se falam actualmente na Europa (excepções: basco, húngaro, filandês, turco). (...)
            Por volta do ano 2000, o povo grego, doravante desligado da comunidade primeira e ocupando a planície do Danúbio, começa a infiltrar-se nas terras que o Mediterrâneo oriental banha, quer na costa asiática, quer nas ilhas do Egeu, quer na Grécia propriamente dita. O mundo grego antigo compreende, pois, desde a origem, as duas margens do Egeu, e, no caminho da civilização, a Grécia da Ásia precede de muito a da Europa.(...)
            Que terra era esta que iria tornar-se a Hélada? Que recursos primeiros, que obstáculos oferecia a um povo primitivo para uma longa duração histórica, uma marcha tacteante para a civilização?
            Dois caracteres importa revelar: a montanha e  o mar.
            A Grécia é um país muito montanhoso, embora os seus pontos mais altos não atinjam nunca três mil metros. Mas a montanha está por toda a parte, corre e trepa em todas as direcções, por vezes muito abrupta. Os antigos marinhavam-se por carreiros que subiam a direito, sem se dar ao trabalho de zigue-zaguear. Degraus talhados na rocha, no mais escarpado da encosta. Esta montanha anárquica dava um país dividido numa multidão de pequenos cantões, a maior parte dos quais, aliás, tocavam o mar. Daqui resultava uma compartimentação favorável  à forma política a que os Gregos chamam cidade.
            Forma cantonal do Estado. Pequeno território fácil de defender. Natural de amar. Nenhuma necessidade de ideologia para isto nem de carta geográfica. Subindo a uma elevação, cada qual abraça, com um olhar, o seu país inteiro. No pé das encostas ou na planície, algumas aldeias. Uma povoação construída sobre uma acrópole, eis a capital. Ao mesmo tempo, fortaleza onde se refugiam os camponeses em caso de agressão, e, nos tempos de paz, que pouca dura entre tantas cidades, praça de mercado. Esta acrópole fortificada é o núcleo da cidade quando nasce o reino urbano. A cidade não é construída à beira-mar – cuidado com os piratas! - , suficientemente próxima dele, no entanto, para instalar um porto.
            As aldeias e os seus campos, uma povoação fortificada, meio citadina, eis os membros esparsos e juntos dum Estado grego. A cidade de Atenas não é menos a campina e as suas lavouras que a cidade e as suas lojas, o porto e os seus barcos, é todo o povo dos Atenienses atrás do seu muro de montanhas, com a sua janela largamente aberta para o mar: é o cantão a que se chama Ática.
            Outras cidades, às dúzias, noutras molduras semelhantes. Entre estas cidades numerosas, múltiplas rivalidades: políticas, económicas – e a guerra ao cabo delas. Nunca se assinam tratados de paz entre cidades gregas, apenas tréguas: contratos a curto prazo, cinco anos, dez, trinta anos, o máximo. Mas antes de passado o prazo a guerra recomeçou. As guerras de trinta anos e mais são mais numerosas na história grega que as pazes de trinta anos.
            Mas a eterna rivalidade grega merece por vezes um nome mais belo: emulação. Emulação desportiva, cultural. O concurso é uma das formas preferidas da actividade grega. Os grandes concursos desportivos de Olímpia e outros santuários fazem largar as armas das mãos beligerantes. Durante estes dias de festa, os embaixadores, os atletas, as multidões circulam livremente por todas as estradas da Grécia. Há  também em todas as cidades formas múltiplas de concursos entre os cidadãos. Em Atenas, concursos de tragédias, de comédias, de poesia lírica.(...)
            A montanha protege e separa, o mar amedronta mas une. Os Gregos não estavam encerrados nos seus compartimentos montanhosos. O mar envolvia todo o país, penetrava profundamente nele. Havia pouquíssimos cantões, menos recuados, que o mar não atingisse.
            Mar temível, mas tentador e mais aliciante que qualquer outro. Sob um céu claro, na atmosfera límpida, o olhar do nauta descobre a terra duma ilha montanhosa a cento e cinqüenta quilómetros de distância. Vê-a como ‘um escudo pousado sobre o mar’.
            Um dos nomes que o mar toma em grego significa estrada. Ir pelo mar, é ir pela estrada. O mar Egeu é uma estrada que, de ilha em ilha, conduz o marinheiro da Europa à Ásia sem que ele perca nunca a terra de vista. Estas cadeias de ilhotas parecem calhaus lançados por garotos num regato para o atravessarem, saltando de um para outro. [3]







 Temporalidade, memória e literatura dialogam em perfeita harmonia e singularidade quando pensamos alguns aspectos de nossa existência. 



[1] Teogonia, a origem dos Deuses, p. 15.
[2] Idem.
[3] André Bonnard,  tradução de José Saramago, A Civilização Grega, p.18-22.

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