Ana Maria Haddad Baptista
Temporalidade, memória e literatura dialogam em perfeita harmonia e singularidade quando pensamos alguns aspectos de nossa existência.
A categoria
tempo não pode ser vista somente a partir de uma perspectiva única. O tempo
comporta, conforme já observaram diversos pensadores, muitas outras formas de
abordagens. Desta maneira, sabe-se, tudo que diz respeito ao tempo, ao longo da
história do homem, afeta desde recortes epistemológicos a questões relacionadas
com o nosso cotidiano.
A forma pela
qual o Ocidente concebeu e concebe o
tempo recebeu uma grande influência dos gregos antigos. A consciência e o
conhecimento dos mecanismos que envolvem a apreensão do tempo são importantes à
medida que esclarecem outros aspectos pouco observáveis de nossa realidade,
como por exemplo, a forma pelo qual nosso Universo é visto nos dias atuais,
assim como a sociedade contemporânea se
pautou em mecanismos que parecem engolir os nossos segundos, minutos, horas,
dias, semanas.
O tempo, sob
nossa perspectiva, pode ser enfocado de maneira mais abrangente se, também, estiver
ligado às questões de memória. Portanto, tempo-memória são categorias, a nosso ver, totalmente,
indissociáveis, sob pena de uma perda irrecuperável no que se refere à sua estreita ligação.
Mas... afinal...
o que é o tempo-memória? Mesmo correndo um grande risco, em se tratando de
conceitos, é multiplicidade. Pode-se
pensar, por exemplo, no tempo enquanto uma categoria objetiva. Desta forma,
sucessividade, quantidade, horizontalidade e outros conceitos que estejam
relacionados na mesma direção . O tempo objetivo é o tempo que determina as nossas ações mais imediatas, o
que, na verdade, manipula o nosso dia-dia. É o famoso tempo dos relógios,
perversamente, para os olhos da atualidade, o soberano que comanda nossa vida
social.
Contudo, o tempo
pode também ser visto sob uma ótica completamente distinta em vez de padrões
mensuráveis. Pode ser abordado enquanto
uma categoria subjetiva. Ou seja, a partir de uma perspectiva que leve em conta
as diferenças pessoais de cada um. Nessa perspectiva, o ritmo do tempo não
possui elementos de quantificação. Ele é medido de acordo com as experiências
de cada pessoa. Estaria ligado às
sensações internas de cada um de nós. É o famoso tempo enquanto duração.
Duração lembra Bergson. Liberdade. Subjetividade. Temporalidade.
Hesíodo: um poeta grego
Quem teria sido
um dos primeiros a falar do tempo e da memória no Ocidente? Que tipo de
literatura teria feito tal referência? Um poeta grego bastante conhecido foi
Hesíodo . De acordo com Jaa Torrano “a poesia de Hesíodo é arcaica (...). Na
afirmação segundo a qual a poesia de Hesíodo é arcaica, devemos levar em conta
o sentido historiográfico da palavra arcaico (‘Época Arcaica’).”[1] O
autor prossegue declarando: “Os estudiosos designaram Arcaica a Época em cujos
umbrais Hesíodo viveu e compôs seus cantos. Na Grécia, os séculos VIII-VII a.C.
testemunharam a germinação ou transplante de instituições sociais e culturais.”[2]
Vejamos (uma
parte) de um poema de Hesíodo:
Poêmio: hino às Musas
Pelas Musas
heliconíades comecemos a cantar.
Elas têm grande
e divino o monte Hélicon,
em volta fa
fonte violácea com pés suaves
dançam e do
altar do bem forte filho de Crono.
Banharam a tenra
pele no Permesso
ou na fonte do
Cavalo ou no Olmio divino
e irrompendo com
os pés fizeram coros
belos ardentes
no ápice do Hélicon.
Daí
precipitando-se ocultas por muita névoa
Vão em renques
noturnos lançando belíssima voz,
Hineando Zeus
porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada
de áreas sandálias,
Atenas de olhos
glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso
Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon que
sustém e treme a terra,
Têmis veneranda,
Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de área
coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande
Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto,
Crono de curvo pensar,
Terra, o grande
Oceano, a Noite negra
e o sagrado ser
dos outros imortais sempre vivos.
Elas um dia a
Hesíodo ensinaram belo canto
quando
pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divnino.
Esta palavra
primeiro disseram-me as Deusas
Musas
olimpíades, virgem de Zeus porta-égide:
“Pastores
agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas
mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se
queremos, dar a ouvir revelações”.
Assim falaram a
virgens do grande Zeus verídicas,
Por cetro
deram-me um ramo, a um louveiro viçoso
colhendo-o
admirável, e inspiraram-me um canto
divino para que
eu glorie o futuro e o passado,
impeliram-me a
hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas
primeiro e por último sempre cantar.
Mas por que me vem
isto de carvalho e de pedra?
Eia! Pelas Musas
comecemos, elas a Zeus pai
hineando alegram
o grande espírito no Olimpo
dizendo o
presente, o futuro e o passado
vozes aliando.
Infatigável flui o som
das bocas,
suave. Brilha o palácio do pai
Zeus troante
quando a voz lirial das Deusas
espalha-se, ecoa
com a cabeça do Olimpo nevado
e o palácio dos
imortais. Lançando voz imperecível
o ser venerando
dos Deuses primeiro gloriam no canto
dês o começo: os
que a Terra e o Céu amplo geraram
e os deles
nascidos Deuses doadores de bens,
depois Zeus pai
dos Deuses e dos homens,
no começo e no
fim do canto hineiam as Deusas
o mais forte dos
Deuses e o maior em poder,
e ainda o ser de
homens e de poderosos Gigantes.
Hineando alegram
o espírito de Zeus no Olimpo
Musas
olimpíades, virgens de Zeus porta-égide.
Na Piéria
gerou-as, da união do Pai Cronida,
Memória rainha
nas colinas de Eleutera,
para oblívio de
males e pausa de aflições,
Nove noites teve
uniões com ela o sábio Zeus
longe dos
imortais subindo ao sagrado leito.
Quando girou o
ano e retornaram as estações
com as mínguas
das luas e muitos dias findaram,
ela pariu nove
moças concordes que dos cantares
têm o desvelo no
peito e não triste- ânimo,
perto do ápice
altíssimo do nevoso Olimpo,
aí os seus coros
luzentes e belo palácio.
Junto a elas as
Graças e o Desejo têm morada
nas festas,
pelas bocas amável voz lançando
dançam e gloriam
a partilha e hábitos nobres
de todos os
imortais, voz bem amável lançando.
Elas iam ao
Olimpo exultantes com a bela voz,
imperecível
dança. Em torno gritava a terra negra
ao hinearem, dos
pés amável ruído erguia-se
ao irem a seu
pai. Ele reina no céu
tendo consigo o
trovão e o raio flamante,
venceu no poder
o pai Crono, e aos imortais
bem distribuiu e
indicou cada honra;
isto as Musas
cantavam, tendo o palácio olímpio,
nove filhas
nascidas do grande Zeus:
Glória, Alegria,
Festa, Dançarina,
Alegra-coro,
Amorosa, Hinária, Celeste
e Belavoz, que
dentre todas vem à frente.
Ela é que
acompanha os reis venerandos.
A quem honram as
virgens do grande Zeus
e dentre reis
sustentados por Zeus vêem nascer,
elas lhe vertem
sobre a língua o doce orvalho
e palavras de
mel fluem da boca. Todas
as gentes o
olham decidir sentenças
com reta justiça
e ele firme falando na ágora
logo à grande
discórdia cônscio põe fim,
pois os reis têm
prudência quanto às gentes
violadas na
ágora perfazem as reparações
facilmente, a
persuadir com brandas palavras.
Indo à
assembléia, como a um Deus o propiciam
pelo doce honor
e suas reuniões se distingue.
Tal das Musas o
sagrado dom aos homens.
Pelas Musas e
pelo golpeante Apolo
há cantores e
citaristas sobre a terra,
e por Zeus,
reis. Feliz é quem as Musas
amam, doce de
sua boca flui a voz.
Se com angústia
no ânimo recém-ferido
alguém aflito
mirra o coração e se o cantor
servo das Musas
hineia a glória dos antigos
e os venturosos
Deuses que têm o Olimpo,
logo esquece os
pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os
desviaram os dons das Deusas.
Alegrai, filhas
de Zeus, dai ardente canto,
gloriai o
sagrado ser dos imortais sempre vivos,
os que nasceram
da Terra e do Céu constelado,
os da Noite
trevosa, os que o salgado Mar criou.
Dizei como no
começo Deuses e Terra nasceram,
os Rios, o Mar
infinito impetuoso de ondas,
os Astros
brilhantes e o Céu amplo em cima.
Os deles
nascidos Deuses doadores nascidos de bens
como dividiram a
opulência e repartiram as honras
e como no começo
tiveram o rugoso Olimpo.
Dizei-me isto,
Musas que tendes o palácio olímpio,
dês o começo e
quem dentre eles primeiro nasceu.
O poema em referência
é parte do famoso e clássico texto chamado de Teogonia, A Origem dos Deuses, de
Hesíodo. Foi traduzido, diretamente do grego, por Jaa Torrano. Este poema
retrata, entre outras coisas, o nascimento das deusas da memória. As deusas da
memória são consideradas as prolongadoras da memória. De alguma maneira este poema marca o nascimento
do tempo, o nascimento do universo, sob uma ótica completamente distinta em
relação aos dias atuais.
O texto a seguir
descreve, introdutoriamente, algumas características do povo grego:
Entremos na Grécia com o povo grego.
Este
povo – que a si mesmo se chamava os Helenos – fazia parte, pela língua (não nos
arrisquemos a falar da raça), da grande família dos povos a que chamamos
indo-europeus. A língua grega, com efeito, pelo seu vocabulário, pelas suas
conjugações e declinações, pela sua sintaxe, é próxima das línguas faladas
antigamente e hoje ainda na Índia e da maior parte das que se falam actualmente
na Europa (excepções: basco, húngaro, filandês, turco). (...)
Por
volta do ano 2000, o povo grego, doravante desligado da comunidade primeira e
ocupando a planície do Danúbio, começa a infiltrar-se nas terras que o
Mediterrâneo oriental banha, quer na costa asiática, quer nas ilhas do Egeu,
quer na Grécia propriamente dita. O mundo grego antigo compreende, pois, desde
a origem, as duas margens do Egeu, e, no caminho da civilização, a Grécia da
Ásia precede de muito a da Europa.(...)
Que
terra era esta que iria tornar-se a Hélada? Que recursos primeiros, que
obstáculos oferecia a um povo primitivo para uma longa duração histórica, uma
marcha tacteante para a civilização?
Dois
caracteres importa revelar: a montanha e
o mar.
A
Grécia é um país muito montanhoso, embora os seus pontos mais altos não atinjam
nunca três mil metros. Mas a montanha está por toda a parte, corre e trepa em
todas as direcções, por vezes muito abrupta. Os antigos marinhavam-se por
carreiros que subiam a direito, sem se dar ao trabalho de zigue-zaguear.
Degraus talhados na rocha, no mais escarpado da encosta. Esta montanha
anárquica dava um país dividido numa multidão de pequenos cantões, a maior
parte dos quais, aliás, tocavam o mar. Daqui resultava uma compartimentação
favorável à forma política a que os
Gregos chamam cidade.
Forma
cantonal do Estado. Pequeno território fácil de defender. Natural de amar.
Nenhuma necessidade de ideologia para isto nem de carta geográfica. Subindo a
uma elevação, cada qual abraça, com um olhar, o seu país inteiro. No pé das
encostas ou na planície, algumas aldeias. Uma povoação construída sobre uma
acrópole, eis a capital. Ao mesmo tempo, fortaleza onde se refugiam os
camponeses em caso de agressão, e, nos tempos de paz, que pouca dura entre
tantas cidades, praça de mercado. Esta acrópole fortificada é o núcleo da
cidade quando nasce o reino urbano. A cidade não é construída à beira-mar – cuidado
com os piratas! - , suficientemente próxima dele, no entanto, para instalar um
porto.
As
aldeias e os seus campos, uma povoação fortificada, meio citadina, eis os
membros esparsos e juntos dum Estado grego. A cidade de Atenas não é menos a
campina e as suas lavouras que a cidade e as suas lojas, o porto e os seus
barcos, é todo o povo dos Atenienses atrás do seu muro de montanhas, com a sua
janela largamente aberta para o mar: é o cantão a que se chama Ática.
Outras
cidades, às dúzias, noutras molduras semelhantes. Entre estas cidades numerosas, múltiplas rivalidades: políticas,
económicas – e a guerra ao cabo delas. Nunca
se assinam tratados de paz entre cidades gregas, apenas tréguas: contratos a
curto prazo, cinco anos, dez, trinta anos, o máximo. Mas antes de passado o
prazo a guerra recomeçou. As guerras de trinta anos e mais são mais numerosas
na história grega que as pazes de trinta anos.
Mas
a eterna rivalidade grega merece por vezes um nome mais belo: emulação.
Emulação desportiva, cultural. O concurso é uma das formas preferidas da
actividade grega. Os grandes concursos desportivos de Olímpia e outros
santuários fazem largar as armas das mãos beligerantes. Durante estes dias de
festa, os embaixadores, os atletas, as multidões circulam livremente por todas
as estradas da Grécia. Há também em
todas as cidades formas múltiplas de concursos entre os cidadãos. Em Atenas,
concursos de tragédias, de comédias, de poesia lírica.(...)
A
montanha protege e separa, o mar amedronta mas une. Os Gregos não estavam
encerrados nos seus compartimentos montanhosos. O mar envolvia todo o país, penetrava profundamente nele. Havia
pouquíssimos cantões, menos recuados, que o mar não atingisse.
Mar
temível, mas tentador e mais aliciante que qualquer outro. Sob um céu claro, na
atmosfera límpida, o olhar do nauta descobre a terra duma ilha montanhosa a
cento e cinqüenta quilómetros de distância. Vê-a como ‘um escudo pousado sobre
o mar’.
Um
dos nomes que o mar toma em grego significa estrada. Ir pelo mar, é ir pela estrada.
O mar Egeu é uma estrada que, de ilha em ilha, conduz o marinheiro da Europa à
Ásia sem que ele perca nunca a terra de vista. Estas cadeias de ilhotas parecem
calhaus lançados por garotos num regato para o atravessarem, saltando de um
para outro. [3]
[1] Teogonia, a origem dos Deuses, p. 15.
[2] Idem.
[3] André
Bonnard, tradução de José Saramago, A Civilização Grega, p.18-22.
Nenhum comentário:
Postar um comentário