quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Da Interpretação IV: Princípio de Referencialidade


Ana Maria Haddad Baptista

Ao interpretarmos um texto, como já dissemos em textos anteriores, requer alguns aspectos e procedimentos para que possamos nos aproximar de forma mais exata daquilo que o enunciado está comunicando.
Nessa medida, selecionamos quatro aspectos básicos que serão analisados ao considerarmos a interpretação:

1. Princípio da referencialidade, ou seja, qual o grau de informação do texto a ser interpretado? Quais são seus referenciais mais objetivos e explícitos?

2 . Elementos que vão além do texto. Quais são os elementos, além do texto, que interferem na interpretação?

3. A intencionalidade do autor e do texto.

4. O universo do receptor.  Limites e possibilidades do intérprete.

No texto de hoje veremos apenas o primeiro princípio:

1. Princípio de referencialidade

Interpretar é, essencialmente, dar significado. Quando olhamos para o mundo buscamos nele dar um sentido, ler um sentido. Olhamos para o Universo, em qualquer situação, buscando um sentido, uma leitura.
Considero, em termos didáticos, para facilitar a qualquer pessoa que tenha certas dificuldades em interpretar textos, que, primeiramente, deve-se considerar a referencialidade do texto, ou seja, sua carga explícita de informação. Todo tipo de texto carrega uma carga de informações, seja ele impresso ou não. Tal carga, em primeiro lugar, deve ser respeitada e analisada.
Quando leio:
Ontem vi um pinguim, já está convencionado de alguma forma, que vi um animalzinho de pequenas asas, que conforme o tipo é preto e branco. Tal fato é inegável. Não posso ler, porque assim quero, Ontem vi uma borboleta. Entretanto, aqui vai uma pequena confusão, na maioria das vezes, por falta de uma nomenclatura do senso comum: as associações subjetivas que podemos fazer ao ler um enunciado são infinitas. Sabe-se: ao ler um enunciado posso naquele momento estar associando a qualquer coisa que eu queira ou que me venha à memória. Ao ler o enunciado Ontem vi um pinguim posso lembrar do pinguim que minha avó tinha sobre a geladeira. Ou posso lembrar de um documentário a respeito da Antártica que vi outro dia na televisão. Enfim posso me lembrar de um certo Timão cujas cores mais representativas são preto e branco. E o que é pior: além das ASSOCIAÇÕES que posso estabelecer serem de caráter pessoal, subjetivo e instransferível pode haver mudanças a cada milésimo de segundo. Lembremos:  somos seres que fluem, nunca somos mais os mesmos, recordemos de uma das maiores verdades que alguém já pronunciou: “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Amanhã ao ler o mesmo enunciado posso fazer associações completamente diferentes, ou mesmo daqui a dez minutos. O que caracteriza a irrepetibilidade de cada milésimo de segundo que vivemos. Tudo o que estamos colocando são pressupostos básicos e condições para qualquer ato interpretativo.
Não há como escapar dessa situação, ou seja, QUALQUER ENUNCIADO PODE NOS LEVAR A ASSOCIAÇÕES SUBJETIVAS, seja o enunciado literário ou não. E é aí que, muitas vezes, existem enganos muito sérios.As regras que estamos estabelecendo são as mesmas para qualquer tipo de enunciado. Literário ou não.
 Vejam: posso ler uma fórmula de química e me colocar a chorar, principalmente, se eu me lembrar de meus tempos de colegial e das dificuldades que tinha para decorar aquela ‘linda’ tabela periódica. Ora, qualquer tipo de enunciado, em princípio, pode me levar às lágrimas, não necessariamente um texto literário ou um lindo poema!
Evidentemente, um texto conceitual, informativo ou científico possui uma perspectiva diferente de um texto literário, no entanto, tal fato não invalida nosso enfoque: a primeira coisa a ser considerada em qualquer tipo de texto é a sua referencialidade.

Conforme nos  alerta o grande pensador Almir de Andrade:

“Na sua plenitude, o conhecimento é esforço de ajustamento, não apenas entre sujeito e objeto (...) mas entre duas objetividades, a objetividade da coisa e a objetividade do sujeito. A expressão a ‘objetividade do sujeito’, se a soubermos empregar devidamente, nos dará não só o verdadeiro sentido do progresso da filosofia  e da ciência, que se esforçam por conhecer o mundo real tal como é, senão que a meta que devemos mirar na própria vida individual, sempre que pretendemos orientar-nos pela experiência do mundo e ajustar a subjetividade do eu a essa experiência, a fim de que possa o eu expandir-se sem prejudicá-la, nem por ela prejudicado nas suas expansões. A objetividade do sujeito representaria, historicamente, secular conquista da experiência humana; e, individualmente, o perene esforço da autodisciplina do espírito, através do qual aprendemos a distinguir as essências subjetivas, que estão em nós, das essências objetivas, que estão nas coisas. Só quando fazemos nitidamente essa distinção é que nos habituamos a viver a nossa própria vida subjetiva sem permitir-lhe que interfira prejudicialmente nas representações objetivas, ou que as mascare a seu capricho. É sempre longa a caminhada e intensa a luta, até que logremos conciliar as duas atitudes e criar, dentro de nós mesmos, objetividade de pensar que corra paralelamente à subjetividade de viver. Nesse instante derradeiro e difícil, em que o conhecimento deixa de ser mera relação entre sujeito e objeto, ou simples auto-revelação do objeto através  do sujeito a si mesmo, um e outro fundidos na ação mesma de ir descobrindo e ser descoberto.” [1]
O pensador conclui, nessa medida,  que sempre estamos expostos às influências e possíveis deturpações que o sujeito possa imprimir no objeto. No entanto, para conduzir a uma possível e autêntica relação entre duas objetividades, a saber,  a objetividade da coisa, assim como a objetividade do sujeito, deve-se levar em consideração  tudo o que possa ser apreendido das relações invariantes e na sua essência real, esta apoiada e reforçada na consolidação da experiência. Unicamente nesse instante pode-se dar um crédito de confiabilidade no que se conhece, com relativa segurança, de que “o mundo é realmente semelhante ao que percebemos, pelo menos na sua única maneira-de-ser- acessível aos nossos sentidos e inteligência, e não como supomos, desejamos ou imaginamos que seja quando o figuramos à semelhança de nós mesmos.” [2]




[1] Almir de Andrade, As duas faces do tempo, p.149
[2] Idem, p. 150.

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