Néctar de Letras e Imagens: Do tempo-memória cíclico
Ana Maria Haddad Baptista
Natureza Morta/Brasil |
O
tempo não pode ser concebido de uma forma única, conforme já foi mencionado em
diversos textos de minha autoria. Um dos conceitos mais difundidos, inclusive,
até os dias de hoje, é justamente, o caráter cíclico de tempo-memória, em
diversos níveis, ou seja, o cíclico que se repete enquanto fenômeno da natureza
e deixa espaço para o imprevisível e o cíclico fechado em si mesmo, sem espaço
para a novidade.
A concepção de tempo que predominava
na Antiguidade Grega era a de um tempo cíclico. É famosa a abordagem de Platão
a respeito do tempo: “Οταν ο πατέρας
του σύμπαντος είδε
το δημισύργημά του να
κινείται και να ζει
– ένας ναός των αιωνίων θεών - ευχαριστηθηκε
και, μέσα στη χαρά
του, σκέφτηκε το κάνει ακόμη
πιο όμοιο με
το υπόδειγμα.” [1] E,
nessa perspectiva, Platão continua declarando que o tempo foi composto por “uma
imagem móbil da eternidade” [2].
Prosseguindo, em seu famoso diálogo em referência, o filósofo grego destaca que
o tempo teria nascido juntamente com o céu, juntamente, com a lua e outros
astros. Inúmeras leituras e interpretações, convergentes e discordantes já
foram feitas a respeito do Timeu em relação ao tempo e ao nascimento do mesmo.
Natureza Verde/ Brasil |
Na esteira de Deleuze, o tempo concebido por Platão é subordinado ao
movimento dos astros. Conclui, o
filósofo francês, que o tempo, nessa época, é um tempo percebido enquanto uma
categoria exterior ao homem. Outro ponto importante a ser destacado,
evidentemente, é a natureza cíclica do tempo.
O Timeu é, antes de mais nada, uma visão cosmológica importante e que
deve ser considerada. Declara Platão:
Em resumo:
quando cada um dos seres que deviam cooperar na criação do tempo iniciou o
movimento apropriado e, como corpos unidos por laços animados, adquiriram vida
e aprenderam as respectivas tarefas, entraram de deslocar-se na órbita do
Outro, que é oblíqua e corta a do Mesmo e por ele é dominado, alguns
movimentando-se em círculos maiores, outros em
menores, com maior velocidade os dos círculos menores e mais lentamente
os dos maiores. (...) Assim e por tal razão nasceram o dia e a noite, que
completam revolução do círculo único e o
mais inteligente. (...) No entanto, é fácil compreender que o número perfeito
do tempo enche o ano perfeito, no momento em que as oito revoluções, com suas
diferentes velocidades, completaram juntas
seu curso e voltaram ao ponto de partida, calculadas aquelas pelo
círculo do Mesmo na sua marcha uniforme.” [3]
Depreende-se
do texto, entre tantas outras questões que poderiam ser discutidas e
interpretadas, além de outros textos de Platão no que se refere ao assunto, uma concepção cíclica de natureza e de tempo.
As coisas vão e vêm. Circularidade. Previsibilidade.
Natureza Triste/Portugal |
Um outro ponto importante no Timeu e
que, também, diz respeito ao tempo, seria o famoso mito da Atlântida. Por si
só, independente de qualquer outra coisa, Atlândida remete a uma dimensão de
temporalidade distinta. Remete a um tempo passado, imaginário ou não, se
levarmos em consideração, aos olhos da contemporaneidade, a astúcia de Platão.
Afinal, Atlântida, existiu ou não? Não faltaram dezenas de pessoas que foram,
de maneira incansável, atrás da ilha descrita
pelo filósofo grego e até hoje há sérias dúvidas a respeito do assunto.[4]
Atlândida representaria, entre tantas outras coisas, um tempo perdido, passado,
de uma etapa da humanidade. [5] Talvez
tal etapa tenha sido perdida para sempre, irrecuperável, inclusive, em termos
de memória.
Concluindo: é inegável a simples
constatação de que o tempo faz determinados acontecimentos repetirem-se, logo,
em certos aspectos o tempo possui ritmos cíclicos. Nas palavras de Klein [6]:
Este reflexo
chega-nos de longe. Durante séculos, foi a forma do círculo que reinou,
imperial, sobre o tempo. Passando para a forma geométrica mais acabada, a que
não tem princípio nem fim, cuja regularidade é tão completa que ninguém poderia
aumentá-la, o círculo encarna a figura da perfeição. Contemplar uma forma
redonda não proporciona certo prazer visual? E depois, para além do mais, um
círculo roda! Daí a fascinação que exerce sobre os espíritos. Esta magia vai
desde o Sol até a mais pequena moeda, passando pela bola, pela tarde, pela bola
de sabão, pelas curvas de uma mulher.
O dia após a noite, a noite após o dia, as estações do ano e todas os
acontecimentos de cada estação do ano são repetitivos e, sabe-se, voltam a
acontecer. O tempo cíclico está muito mais presente em nossas vidas do que,
talvez, possamos imaginar.
Natureza/Monotonia/Imagem de Outono |
Vejamos o poema do poeta grego Konstantinos Kavafis (1863-1933)
Monotonia
A um dia monótono outro
monótono, idêntico, segue. Ocorrerão
as mesmas coisas; essas novamente ocorrerão-
os instantes, semelhantes, encontram-nos e deixam-nos.
Um mês passa e traz outro mês.
Essas coisas que chegam facilmente se presumem:
são aquelas de ontem, as enfadonhas.
E o amanhã acaba por já não parecer um amanhã. [7]
O poema em questão, dentre outras leituras possíveis, mostra a monotonia
de um dia após o outro, o que implica, inclusive, na periodicidade, na questão
cíclica da temporalidade.
Especialmente a idéia de um tempo irreversível, em parte, imposta pelos
ideais do progresso parece predominar e excluir outras categorias importantes
de tempo-memória que deveriam ser consideradas. O tempo cíclico é uma
realidade.
Segundo Paolo Rossi [8] o
tempo possui uma direção tal como uma flecha. A visão de tempo linear exclui as
repetições. Os eventos, nessa medida, são considerados individuais,
irrepetíveis e cada coisa se coloca num ponto
determinado da flecha. E, continua
o autor, a metáfora da flecha se mistura de uma forma complicada com a
idéia de um tempo cíclico. Desta forma,
Rossi enfatiza que certas dicotomias são perigosas . Um dos motivos
pelos quais se reforça o tempo enquanto uma flecha que caminha para frente seria
uma intenção de superioridade em relação ao passado, ao lado de uma
confiança no devir.
Obs: Grande parte deste texto foi publicado no livro, de minha autoria, Introdução à Cultura Grega/Arte-Livros Editora/São Paulo.
[1] ΤΙΜΑΙΟΣ,
p.247. Atualizado para o grego moderno, diretamente do grego clássico, por
Basiles Kálfas. Tradução para o português, diretamente do grego clássico, de
Carlos Alberto Nunes. “Quando o pai percebeu vivo e em
movimento o mundo que ele havia gerado à semelhança dos deuses eternos,
regozijou-se, e na sua alegria determinou deixá-lo ainda mais parecido com seu
modelo.” Timeu-Crítias-O Segundo Alcebíades-Hípias Menor, p. 73
[2] Timeu-
Crítias-O Segundo Alcebíades-Hípias Menor, p. 73.
[3] O Tempo de Galileu a Einstein,p. 76
[4] Para quem deseja um aprofundamento a respeito do
assunto indicamos a excelente e abrangente abordagem de Pierre Vidal-Naquet em L’Atlantide: petite histoire d’um mythe
platonicien
[6] Idem, p. 55.
[7] Poemas de K.Kavafis, p. 79. Traduzido
diretamente do grego por Ísis Borges da Fonseca.
[8] El pasado, la
memoria, el olvido, p. 121.
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