Da Interpretação V: Elementos extratextuais do ato interpretativo
Ana Maria Haddad Baptista
Lembremos: estamos sempre a interpretar, em maior ou menor escala, tudo o que nos rodeia. Vejamos um poema:
Heráclito
O segundo crepúsculo.
A noite que afunda no sonho.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo.
A manhã que foi a Alba.
O dia que foi a manhã.
O dia inumerável que será a tarde
gasta.
O segundo crepúsculo.
Esse outro hábito do tempo, a noite.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo...
A Alba sigilosa e na Alba
O soçobro do grego.
Que trama é esta?
Do será, do é e do foi?
Que rio é este
Pelo qual corre o Ganges?
Que rio é este cuja nascente é
inconcebível?
Que rio é este
Que arrasta espada e mitologias?
É inútil que durma.
Corre no sonho, no deserto, num sótão.
O rio me arrebata e eu sou esse rio.
Fui feito de uma matéria
desagregável, de misterioso tempo.
Talvez o manancial esteja em mim.
Talvez de minha sombra
Surjam, fatais e ilusórios, os dias.
Jorge Luis Borges
Num primeiro nível de leitura, ou seja,
o proposto por nós para uma interpretação, sabe-se que o autor está falando do
tempo. De um tempo que flui... que nos
arrebata... como declara Borges. Entretanto, a começar pelo título, Heráclito. Se o receptor não souber que Heráclito foi quem praticamente pensou,
primeiro, na ideia da mobilidade e do
movimento, do ser que flui, que acreditava na junção dos contrários e outros
aspectos das teorias do filósofo de
Éfeso, a interpretação ficará totalmente
comprometida. Ou seja, será uma interpretação que não atinge a grandiosidade
dos elementos que o autor argentino pretende destacar que é justamente a
questão do tempo que flui. Somos seres que fluem. Se não
fosse tal fato estaríamos condenados a viver num eterno presente, conforme comprovam tantas outras áreas do conhecimento.
Além do mais, sabe-se, tudo o que
está ao nosso redor flui. A realidade é, tudo indica, algo inapreensível, o que não quer dizer que não
possamos captá-la sob alguns ângulos.
Nessa medida, de acordo com o exposto, os elementos
extratextuais para a interpretação são fundamentais.
Sabe-se, e não iremos aprofundar tal
ponto, que muitos estudiosos da linguagem pretenderam, especialmente, os
formalistas, buscar a autonomia total de um texto. Ou seja, a partir do próprio
texto extrair toda e qualquer informação em busca de uma pretensa objetividade
textual, partindo do pressuposto de que a linguagem verbal, antes de qualquer
coisa, é uma estrutura lingüística e não foram poucos os argumentos que usaram
para tal posicionamento.
Talvez o mais forte seja o apelo para
o fato de que as línguas ocidentais
não sejam estruturadas na analogia e na semelhança (como a língua
chinesa antiga).
Conforme é sabido a língua é uma
entidade que está fora do homem. Ora, ninguém conhece uma pessoa que tenha
nascido falando. Imaginem um bebê que ao nascer já conversasse, por exemplo,
com o médico. Portanto, é de consenso que a língua é uma entidade material e sua
estrutura está fora de nós. A nossa língua é formada por entidades mínimas
denominadas fonemas. Exemplo: a palavra carneiro. Vamos decompô-la :
c-a-r-n-e-i-r-o, em entidades mínimas, tais entidades em si mesmas não possuem
nenhum significado, tanto é que podem formar outras expressões com sentido
completamente diferente. Por exemplo: carne. Usei de fonemas contidos em carneiro
e formei uma expressão com outro significado.
Enfim, os formalistas e alguns
hermeneutas buscaram uma objetividade e autonomia a partir do próprio texto,
desconsiderando pontos que veremos a seguir.
Vejamos o seguinte enunciado:
PICASSO GANHA 20 CAVALOS, POR MAIS R$ 1 MIL
(O Estado de S. Paulo)
Caso não tivéssemos alguns
conhecimentos prévios como poderíamos estar interpretando tal enunciado?
Que o grande artista Picasso ganhou
20 cavalos por mil reais? E daí teríamos uma grande rede de leituras possíveis
visto que vinte cavalos por mil reais é um tanto barato. Poderíamos imaginar
que os cavalos devem estar praticamente destruídos para estarem sendo vendidos
por um preço tão acessível.
Entretanto, sabe-se, o pintor Picasso já morreu, aliás no ano de
1973. Como ele poderia ter ganho vinte cavalos?
Logo, os conhecimentos extratextuais
são fundamentais para toda e qualquer interpretação. Sabe-se que existe um
carro bastante conhecido da Citroen que se chama Picasso. Tais dados nos
autoriza a pensar que só pode ser o carro que ganha cavalos, termo bastante
usado para denominar a potência de um carro.
Vejamos um outro texto:
“Sim, viagens no tempo são possíveis.
E a convicção com que os pesquisadores se referem a elas chega a espantar. ‘Não
há dúvidas de que é possível construir
uma máquina do tempo capaz de nos levar ao futuro’ , diz o britânico Paul
Davies, cientista mundialmente famoso por seu trabalho com divulgação
científica. ‘Viajar para o futuro é hoje uma questão de engenharia. Depende de
investir altas somas para desenvolver a tecnologia necessária’, garante o
físico americano J.Richard Gott, um dos maiores especialistas dessa área. No
caso de viagens ao passado, porém, a convicção é substituída por um acirrado
debate que envolve nomes do calibre de Stephen Hawking, o maior físico vivo e
ferrenho adversário da idéia.
A possibilidade de se viajar no tempo
é conhecida desde o início do século 20. Mas durante décadas o tema foi
discretamente posto de lado. Os cientistas se sentiam constrangidos em mostrar
interesse por um tema explorado até a exaustão pela ficção científica. Mas a
partir dos anos de 1980 uma nova geração começou a analisar seriamente o
assunto, atraída pela possibilidade de realizar novas descobertas. O resultado
é que hoje já existem várias idéias sobre como realizar o tão sonhado ‘salto
temporal’.” (Revista Galileo, 2009)
Em princípio não podemos, no sentido mais literal, darmos
um salto para o futuro e muito menos para o passado. Contudo, o salto
temporal a que se refere o artigo da
revista em questão tem como princípio a relatividade de Einstein e outros
elementos da física moderna que tornariam possível um salto para o futuro.
Sabe-se, inclusive, que se fosse possível uma nave espacial chegar a uma
velocidade próxima à velocidade da luz, os relógios retardariam e o viajante
chegaria mais ‘novo’ ao seu destino em relação aos habitantes da Terra, como
comprova, teoricamente, o famoso paradoxo dos gêmeos.
Entretanto, para se compreender o
texto em questão seria preciso ter muito mais conhecimento a respeito da física
moderna para que pudéssemos entendê-lo melhor. Mais próximo de uma verdade...Cabe aqui recordarmos que a preocupação com a verdade, nem de
longe foi somente de pensadores mais voltados para a área
científica. Ouçamos Fernando Pessoa:
Ah, quem escreverá a história do que
poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.
O que há é só o mundo verdadeiro, não
é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade
está aí.
Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não
conseguimos nunca.
Que é daquela nossa verdade – o sonho
à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza – o
propósito à mesa de depois?
Medito, a cabeça curvada contra as
mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de
sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois
do jantar.
Que é da minha realidade, que só
tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?
Evidentemente que há inúmeras
leituras que podemos fazer do poema em questão. Entretanto, uma possível é o
questionamento da verdade e da realidade. Podemos destacar: ‘somos todos quem
nos supusemos’. Quem somos nós para nós mesmos? Aquilo que supusemos... É uma
condenação humana.
Depreeende-se do poema de Fernando
Pessoa a impossibilidade de uma ‘verdade total’ a respeito de nós mesmos, como
acerca daquilo que nos rodeia.
Quando
nos propomos a interpretar, claro que subjaz a intenção de uma verdade. Sejamos menos pretensiosos... chegarmos próximo a uma verdade.
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