sábado, 21 de dezembro de 2013

Néctar de Letras e Imagens: Do Instante

Ana Maria Haddad Baptista

Em breve estaremos, cronologicamente, partindo para um novo ano: 2014. Grande parte da humanidade comemora  a passagem almejando dias melhores. Creio que é o momento de refletirmos, criticamente, a respeito de todos os nossos envolvimentos. Os amorosos. Os profissionais. Os mais pessoais. Enfim...um bom instante para pensarmos com compromisso e responsabilidade.


O insustentável pensar da humanidade/ Rose Marie Silva Haddad

Espero, como muitos, que 2014 seja um ano melhor para todos. Mas...ouçamos as palavras de Borges:

O instante

Onde as eras, o sonho derradeiro
De espadas com que os tártaros sonharam,
Onde as fortes paredes que arrombaram,
E a Árvore de Adão, e o outro Madeiro?
O presente está só. Só a memória
Erige o tempo. Sucessão e engano
São a rotina do relógio. O ano
Menos vão não é do que a vã história.
Há um abismo entre o albor e o sol que desce
De agonias, de luzes, de cuidados;
O rosto, ao se mirar nos desgastados
Cristais da noite, não se reconhece.
O hoje fugaz é tênue e é eterno;
Nem outro Céu esperes, nem Inferno.


Memória

Memória


Memória

Desejo a todos os meus amigos, colegas de trabalho, em especial, aos meus alunos do presente e do passado, que tenham as melhores possibilidades de leitura possíveis e, sobretudo, que as leituras possam agir, de forma efetiva, para  a construção de uma humanidade mais igual, mais justa e mais solidária.
Viva 2014!




quarta-feira, 18 de dezembro de 2013


Néctar de Letras e Imagens: Do tempo universal

Ana Maria Haddad Baptista


Tempos Indefinidos/Portugal




          O tempo considerado como uma categoria absoluta diz respeito a uma perspectiva que durante muitos séculos perdurou. O que se pode entender por tempo absoluto? Uma categoria universal. O nosso universo seria regido por um único tempo que reinaria absoluto, independente do espaço, em todos os níveis. Devemos imaginar que haveria um grande relógio universal que regularia o tempo em todos os cantos do universo. “A primeira matematização do tempo físico, anunciada por Galileu e formalizada por Newton, consistiu em supor que este não tem mais que uma dimensão. O argumento era simples: basta um número para datar um acontecimento físico. Há, portanto, apenas um tempo de cada vez.”[1] O tempo absoluto, entre tantas outras possibilidades, aponta para uma representação de continuidade. Veja-se que tal concepção é bastante diferente de um tempo cíclico, como concebia Platão. Não existe  espaço para as lacunas, ou seja, não existem acontecimentos ou absolutamente nada que possa ocorrer fora das linhas da marcação de tempo. Nas palavras de Étienne Klein :[2]

Uma linha, com efeito, não pode ser compreendida sob a forma de linha senão por um expectador em situação de exterioridade. Ora, qualquer ‘levitação’ acima do tempo é impossível: nunca nos podemos retirar do presente para observarmos a sua continuidade com o passado ou com o futuro. Então, como diabo podemos  falar ‘de uma forma do tempo’, se isso pressupõe um olhar exterior sobre o tempo que, precisamente, nós não temos? Seremos nós como que peixes misteriosamente capazes de descrever o aspecto exterior do aquário?
           

Presente/Passado/Futuro


Um dos elementos paradoxais do tempo é justamente esse. Como sair do tempo? O tempo é uma teia inquebrável. Tal fato deve ser considerado em vários níveis:  primeiro, o da memória. Não há como nos descartarmos da memória.  Grandes pensadores já disseram que não adianta nada nos queixarmos do passado, ele apenas riria de nós! A memória do que foi e o que foi,  não importa, não volta. O passado , nossa memória, na verdade, a nossa identidade estão grudados em nós tal qual uma cola que nunca se dissolve, tal qual uma goma que nunca se desprende. Uma prisão perpétua. Logo, como analisarmos o tempo e a memória fora delas? Não há possibilidade de exterioridade, segundo tão bem afirma Klein.
Desta forma, sempre que olhamos para o passado será sob a ótica do presente. Uma condenação da humanidade. Justamente porque não temos como sair do tempo e muito menos pularmos para um acontecimento passado tal como ele ocorreu. Como já foi dito a olhada “para trás” sempre será a partir do presente. Com tal perspectiva nunca conseguimos a captação total do passado em si mesmo. Tal fato não implica em afirmar de que não seja possível um “passado em si”, como teria afirmado Bergson.
           Para Newton a força resultava em aceleração. Além disso, Newton considerou que o movimento dos corpos celestes era regido por um sistema de forças comprovadas por resultados matemáticos simples. Sabe-se ter sido concluído que o sistema da mecânica newtoniana poderia controlar o Universo, tal como um fino tecido onde todos os fios se cruzariam de maneira controlada. Não resta a menor dúvida de que um Universo determinístico, previsível e cheio de certezas não deixa de ser altamente atraente e sedutor em diversos níveis. Tal posição invoca controle, submissão e outros conceitos análogos.Um universo previsível e submetido às leis que se repetiriam de maneira idêntica e regular.


Tempos Reflexos/Irlanda
Obs: Grande parte deste texto foi publicado no livro Tempo-Memória, Ana Maria Haddad Baptista/ Editora Arké/São Paulo.



[1] O tempo de Galileu a Einstein, p. 51.
[2] Idem, p. 53


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Néctar de Letras e Imagens: Do tempo-memória cíclico

Ana Maria Haddad Baptista


Natureza Morta/Brasil

            O tempo não pode ser concebido de uma forma única, conforme já foi mencionado em diversos textos de minha autoria. Um dos conceitos mais difundidos, inclusive, até os dias de hoje, é justamente, o caráter cíclico de tempo-memória, em diversos níveis, ou seja, o cíclico que se repete enquanto fenômeno da natureza e deixa espaço para o imprevisível e o cíclico fechado em si mesmo, sem espaço para a novidade.
            A concepção de tempo que predominava na Antiguidade Grega era a de um tempo cíclico. É famosa a abordagem de Platão a respeito do tempo:  “Οταν  ο πατέρας
του σύμπαντος είδε το δημισύργημά  του  να  κινείται  και  να  ζει – ένας  ναός των  αιωνίων  θεών  -  ευχαριστηθηκε  και, μέσα  στη  χαρά  του, σκέφτηκε το κάνει  ακόμη  
πιο όμοιο με το  υπόδειγμα.” [1] E, nessa perspectiva, Platão continua declarando que o tempo foi composto por “uma imagem móbil da eternidade” [2]. Prosseguindo, em seu famoso diálogo em referência, o filósofo grego destaca que o tempo teria nascido juntamente com o céu, juntamente, com a lua e outros astros. Inúmeras leituras e interpretações, convergentes e discordantes já foram feitas a respeito do Timeu em relação ao tempo e ao nascimento do mesmo.

Natureza Verde/ Brasil

Na esteira de Deleuze, o tempo concebido por Platão é subordinado ao movimento dos astros.  Conclui, o filósofo francês, que o tempo, nessa época, é um tempo percebido enquanto uma categoria exterior ao homem. Outro ponto importante a ser destacado, evidentemente, é a natureza cíclica do tempo.  O Timeu é, antes de mais nada, uma visão cosmológica importante e que deve ser considerada. Declara Platão:

Em resumo: quando cada um dos seres que deviam cooperar na criação do tempo iniciou o movimento apropriado e, como corpos unidos por laços animados, adquiriram vida e aprenderam as respectivas tarefas, entraram de deslocar-se na órbita do Outro, que é oblíqua e corta a do Mesmo e por ele é dominado, alguns movimentando-se em círculos maiores, outros em  menores, com maior velocidade os dos círculos menores e mais lentamente os dos maiores. (...) Assim e por tal razão nasceram o dia e a noite, que completam  revolução do círculo único e o mais inteligente. (...) No entanto, é fácil compreender que o número perfeito do tempo enche o ano perfeito, no momento em que as oito revoluções, com suas diferentes velocidades, completaram juntas  seu curso e voltaram ao ponto de partida, calculadas aquelas pelo círculo do Mesmo na sua marcha uniforme.” [3]

            Depreende-se do texto, entre tantas outras questões que poderiam ser discutidas e interpretadas, além de outros textos de Platão no que se refere ao assunto,  uma concepção cíclica de natureza e de tempo. As coisas vão e vêm. Circularidade. Previsibilidade.

Natureza Triste/Portugal

            Um outro ponto importante no Timeu e que, também, diz respeito ao tempo, seria o famoso mito da Atlântida. Por si só, independente de qualquer outra coisa, Atlândida remete a uma dimensão de temporalidade distinta. Remete a um tempo passado, imaginário ou não, se levarmos em consideração, aos olhos da contemporaneidade, a astúcia de Platão. Afinal, Atlântida, existiu ou não? Não faltaram dezenas de pessoas que foram, de maneira incansável, atrás da ilha descrita  pelo filósofo grego e até hoje há sérias dúvidas a respeito do assunto.[4] Atlândida representaria, entre tantas outras coisas, um tempo perdido, passado, de uma etapa da humanidade. [5] Talvez tal etapa tenha sido perdida para sempre, irrecuperável, inclusive, em termos de memória.
            Concluindo: é inegável a simples constatação de que o tempo faz determinados acontecimentos repetirem-se, logo, em certos aspectos o tempo possui ritmos cíclicos. Nas palavras de Klein [6]:

Este reflexo chega-nos de longe. Durante séculos, foi a forma do círculo que reinou, imperial, sobre o tempo. Passando para a forma geométrica mais acabada, a que não tem princípio nem fim, cuja regularidade é tão completa que ninguém poderia aumentá-la, o círculo encarna a figura da perfeição. Contemplar uma forma redonda não proporciona certo prazer visual? E depois, para além do mais, um círculo roda! Daí a fascinação que exerce sobre os espíritos. Esta magia vai desde o Sol até a mais pequena moeda, passando pela bola, pela tarde, pela bola de sabão, pelas curvas de uma mulher.
             
O dia após a noite, a noite após o dia, as estações do ano e todas os acontecimentos de cada estação do ano são repetitivos e, sabe-se, voltam a acontecer. O tempo cíclico está muito mais presente em nossas vidas do que, talvez, possamos imaginar.


Natureza/Monotonia/Imagem de Outono

Vejamos o poema do poeta grego Konstantinos Kavafis (1863-1933)

Monotonia

A um dia monótono outro
monótono, idêntico, segue. Ocorrerão
as mesmas coisas; essas novamente ocorrerão-
os instantes, semelhantes, encontram-nos e deixam-nos.

Um mês passa e traz outro mês.
Essas coisas que chegam facilmente se presumem:
são aquelas de ontem, as enfadonhas.
E o amanhã acaba por já não parecer um amanhã. [7]

O poema em questão, dentre outras leituras possíveis, mostra a monotonia de um dia após o outro, o que implica, inclusive, na periodicidade, na questão cíclica da temporalidade.
Especialmente a idéia de um tempo irreversível, em parte, imposta pelos ideais do progresso parece predominar e excluir outras categorias importantes de tempo-memória que deveriam ser consideradas. O tempo cíclico é uma realidade.
Segundo Paolo Rossi [8] o tempo possui uma direção tal como uma flecha. A visão de tempo linear exclui as repetições. Os eventos, nessa medida, são considerados individuais, irrepetíveis e cada coisa se coloca num ponto  determinado da flecha. E, continua  o autor, a metáfora da flecha se mistura de uma forma complicada com a idéia de um tempo cíclico. Desta forma,  Rossi enfatiza que certas dicotomias são perigosas . Um dos motivos pelos quais se reforça o tempo enquanto uma flecha que caminha para frente  seria  uma intenção de superioridade em relação ao passado, ao lado de uma confiança no devir.


Obs: Grande parte deste texto foi publicado no livro, de minha autoria,  Introdução à Cultura Grega/Arte-Livros Editora/São Paulo.
















[1] ΤΙΜΑΙΟΣ, p.247. Atualizado para o grego moderno, diretamente do grego clássico, por Basiles Kálfas. Tradução para o português, diretamente do grego clássico, de Carlos Alberto Nunes.        “Quando o pai percebeu vivo e em movimento o mundo que ele havia gerado à semelhança dos deuses eternos, regozijou-se, e na sua alegria determinou deixá-lo ainda mais parecido com seu modelo.”  Timeu-Crítias-O Segundo Alcebíades-Hípias Menor,  p. 73
[2] Timeu- Crítias-O Segundo Alcebíades-Hípias Menor, p. 73.
[3] O  Tempo de Galileu a Einstein,p. 76

[4] Para quem deseja um aprofundamento a respeito do assunto indicamos a excelente e abrangente abordagem de Pierre Vidal-Naquet em L’Atlantide: petite histoire d’um mythe platonicien
[5] O Tempo de Galileu a Einstein, p. 61.
[6] Idem,  p. 55.
[7] Poemas de K.Kavafis, p. 79. Traduzido diretamente do grego por Ísis Borges da Fonseca.
[8] El pasado, la memoria, el olvido, p. 121.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Néctar de Letras e Imagens: Temporalidades, Memórias e Literatura

Ana Maria Haddad Baptista




A categoria tempo não pode ser vista somente a partir de uma perspectiva única. O tempo comporta, conforme já observaram diversos pensadores, muitas outras formas de abordagens. Desta maneira, sabe-se, tudo que diz respeito ao tempo, ao longo da história do homem, afeta desde recortes epistemológicos a questões relacionadas com o  nosso cotidiano.
A forma pela qual o Ocidente concebeu e concebe  o tempo recebeu uma grande influência dos gregos antigos. A consciência e o conhecimento dos mecanismos que envolvem a apreensão do tempo são importantes à medida que esclarecem outros aspectos pouco observáveis de nossa realidade, como por exemplo, a forma pelo qual nosso Universo é visto nos dias atuais, assim  como a sociedade contemporânea se pautou em mecanismos que parecem engolir os nossos segundos, minutos, horas, dias, semanas.
O tempo, sob nossa perspectiva, pode ser enfocado de maneira mais abrangente se, também, estiver ligado às questões de memória. Portanto, tempo-memória  são categorias, a nosso ver, totalmente, indissociáveis, sob pena de uma perda irrecuperável no que se refere à sua  estreita ligação.
Mas... afinal... o que é o tempo-memória? Mesmo correndo um grande risco, em se tratando de conceitos,  é multiplicidade. Pode-se pensar, por exemplo, no tempo enquanto uma categoria objetiva. Desta forma, sucessividade, quantidade, horizontalidade e outros conceitos que estejam relacionados na mesma direção . O tempo objetivo é o tempo que  determina as nossas ações mais imediatas, o que, na verdade, manipula o nosso dia-dia. É o famoso tempo dos relógios, perversamente, para os olhos da atualidade, o soberano que comanda nossa vida social.
Contudo, o tempo pode também ser visto sob uma ótica completamente distinta em vez de padrões mensuráveis. Pode ser abordado enquanto uma categoria subjetiva. Ou seja, a partir de uma perspectiva que leve em conta as diferenças pessoais de cada um. Nessa perspectiva, o ritmo do tempo não possui elementos de quantificação. Ele é medido de acordo com as experiências de cada pessoa.  Estaria ligado às sensações internas de cada um de nós. É o famoso tempo enquanto duração. Duração lembra Bergson. Liberdade. Subjetividade. Temporalidade.

Hesíodo: um poeta grego

Quem teria sido um dos primeiros a falar do tempo e da memória no Ocidente? Que tipo de literatura teria feito tal referência? Um poeta grego bastante conhecido foi Hesíodo . De acordo com Jaa Torrano “a poesia de Hesíodo é arcaica (...). Na afirmação segundo a qual a poesia de Hesíodo é arcaica, devemos levar em conta o sentido historiográfico da palavra arcaico (‘Época Arcaica’).”[1] O autor prossegue declarando: “Os estudiosos designaram Arcaica a Época em cujos umbrais Hesíodo viveu e compôs seus cantos. Na Grécia, os séculos VIII-VII a.C. testemunharam a germinação ou transplante de instituições sociais e culturais.”[2]
Vejamos (uma parte) de um poema de Hesíodo:





Poêmio: hino às Musas

Pelas Musas heliconíades  comecemos a cantar.
Elas têm grande e divino o monte Hélicon,
em volta fa fonte violácea com pés suaves
dançam e do altar do bem forte filho de Crono.
Banharam a tenra pele no Permesso
ou na fonte do Cavalo ou no Olmio divino
e irrompendo com os pés fizeram coros
belos ardentes no ápice do Hélicon.
Daí precipitando-se ocultas por muita névoa
Vão em renques noturnos lançando belíssima voz,
Hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de áreas sandálias,
Atenas de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de área coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto, Crono de curvo pensar,
Terra, o grande Oceano, a Noite negra
e o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.


Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto
quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divnino.
Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas
Musas olimpíades, virgem de Zeus porta-égide:
“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.
Assim falaram a virgens do grande Zeus verídicas,
Por cetro deram-me um ramo, a um louveiro viçoso
colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado,
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por último sempre cantar.
Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?

Eia! Pelas Musas comecemos, elas a Zeus pai
hineando alegram o grande espírito no Olimpo
dizendo o presente, o futuro e o passado
vozes aliando. Infatigável flui o som
das bocas, suave. Brilha o palácio do pai
Zeus troante quando a voz lirial das Deusas
espalha-se, ecoa com a cabeça do Olimpo nevado
e o palácio dos imortais. Lançando voz imperecível
o ser venerando dos Deuses primeiro gloriam no canto
dês o começo: os que a Terra e o Céu amplo geraram
e os deles nascidos Deuses doadores de bens,
depois Zeus pai dos Deuses e dos homens,
no começo e no fim do canto hineiam as Deusas
o mais forte dos Deuses e o maior em poder,
e ainda o ser de homens e de poderosos Gigantes.
Hineando alegram o espírito de Zeus no Olimpo
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide.

Na Piéria gerou-as, da união do Pai Cronida,
Memória rainha nas colinas de Eleutera,
para oblívio de males e pausa de aflições,
Nove noites teve uniões com ela o sábio Zeus
longe dos imortais subindo ao sagrado leito.
Quando girou o ano e retornaram as estações
com as mínguas das luas e muitos dias findaram,
ela pariu nove moças concordes que dos cantares
têm o desvelo no peito e não triste- ânimo,
perto do ápice altíssimo do nevoso Olimpo,
aí os seus coros luzentes e belo palácio.
Junto a elas as Graças e o Desejo têm morada
nas festas, pelas bocas amável voz lançando
dançam e gloriam a partilha e hábitos nobres
de todos os imortais, voz bem amável lançando.


Elas iam ao Olimpo exultantes com a bela voz,
imperecível dança. Em torno gritava a terra negra
ao hinearem, dos pés amável ruído erguia-se
ao irem a seu pai. Ele reina no céu
tendo consigo o trovão e o raio flamante,
venceu no poder o pai Crono, e aos imortais
bem distribuiu e indicou cada honra;
isto as Musas cantavam, tendo o palácio olímpio,
nove filhas nascidas do grande Zeus:
Glória, Alegria, Festa, Dançarina,
Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste
e Belavoz, que dentre todas vem à frente.
Ela é que acompanha os reis venerandos.
A quem honram as virgens do grande Zeus
e dentre reis sustentados por Zeus vêem nascer,
elas lhe vertem sobre a língua o doce orvalho
e palavras de mel fluem da boca. Todas
as gentes o olham decidir sentenças
com reta justiça e ele firme falando na ágora
logo à grande discórdia cônscio põe fim,
pois os reis têm prudência quanto às gentes
violadas na ágora perfazem as reparações
facilmente, a persuadir com brandas palavras.
Indo à assembléia, como a um Deus o propiciam
pelo doce honor e suas reuniões se distingue.
Tal das Musas o sagrado dom aos homens.
Pelas Musas e pelo golpeante Apolo
há cantores e citaristas sobre a terra,
e por Zeus, reis. Feliz é quem as Musas
amam, doce de sua boca flui a voz.
Se com angústia no ânimo recém-ferido
alguém aflito mirra o coração e se o cantor
servo das Musas hineia a glória dos antigos
e os venturosos Deuses que têm o Olimpo,
logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os desviaram os dons das Deusas.

Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto,
gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos,
os que nasceram da Terra e do Céu constelado,
os da Noite trevosa, os que o salgado Mar criou.
Dizei como no começo Deuses e Terra nasceram,
os Rios, o Mar infinito impetuoso de ondas,
os Astros brilhantes e o Céu amplo em cima.
Os deles nascidos Deuses doadores nascidos de bens
como dividiram a opulência e repartiram as honras
e como no começo tiveram o rugoso Olimpo.
Dizei-me isto, Musas que tendes o palácio olímpio,
dês o começo e quem dentre eles primeiro nasceu.

O poema em referência é parte do famoso e clássico texto chamado de Teogonia, A Origem dos Deuses, de Hesíodo. Foi traduzido, diretamente do grego, por Jaa Torrano. Este poema retrata, entre outras coisas, o nascimento das deusas da memória. As deusas da memória são consideradas as prolongadoras da memória.  De alguma maneira este poema marca o nascimento do tempo, o nascimento do universo, sob uma ótica completamente distinta em relação aos dias atuais.



O texto a seguir descreve, introdutoriamente, algumas características do povo grego:


            Entremos na Grécia com o povo grego.
            Este povo – que a si mesmo se chamava os Helenos – fazia parte, pela língua (não nos arrisquemos a falar da raça), da grande família dos povos a que chamamos indo-europeus. A língua grega, com efeito, pelo seu vocabulário, pelas suas conjugações e declinações, pela sua sintaxe, é próxima das línguas faladas antigamente e hoje ainda na Índia e da maior parte das que se falam actualmente na Europa (excepções: basco, húngaro, filandês, turco). (...)
            Por volta do ano 2000, o povo grego, doravante desligado da comunidade primeira e ocupando a planície do Danúbio, começa a infiltrar-se nas terras que o Mediterrâneo oriental banha, quer na costa asiática, quer nas ilhas do Egeu, quer na Grécia propriamente dita. O mundo grego antigo compreende, pois, desde a origem, as duas margens do Egeu, e, no caminho da civilização, a Grécia da Ásia precede de muito a da Europa.(...)
            Que terra era esta que iria tornar-se a Hélada? Que recursos primeiros, que obstáculos oferecia a um povo primitivo para uma longa duração histórica, uma marcha tacteante para a civilização?
            Dois caracteres importa revelar: a montanha e  o mar.
            A Grécia é um país muito montanhoso, embora os seus pontos mais altos não atinjam nunca três mil metros. Mas a montanha está por toda a parte, corre e trepa em todas as direcções, por vezes muito abrupta. Os antigos marinhavam-se por carreiros que subiam a direito, sem se dar ao trabalho de zigue-zaguear. Degraus talhados na rocha, no mais escarpado da encosta. Esta montanha anárquica dava um país dividido numa multidão de pequenos cantões, a maior parte dos quais, aliás, tocavam o mar. Daqui resultava uma compartimentação favorável  à forma política a que os Gregos chamam cidade.
            Forma cantonal do Estado. Pequeno território fácil de defender. Natural de amar. Nenhuma necessidade de ideologia para isto nem de carta geográfica. Subindo a uma elevação, cada qual abraça, com um olhar, o seu país inteiro. No pé das encostas ou na planície, algumas aldeias. Uma povoação construída sobre uma acrópole, eis a capital. Ao mesmo tempo, fortaleza onde se refugiam os camponeses em caso de agressão, e, nos tempos de paz, que pouca dura entre tantas cidades, praça de mercado. Esta acrópole fortificada é o núcleo da cidade quando nasce o reino urbano. A cidade não é construída à beira-mar – cuidado com os piratas! - , suficientemente próxima dele, no entanto, para instalar um porto.
            As aldeias e os seus campos, uma povoação fortificada, meio citadina, eis os membros esparsos e juntos dum Estado grego. A cidade de Atenas não é menos a campina e as suas lavouras que a cidade e as suas lojas, o porto e os seus barcos, é todo o povo dos Atenienses atrás do seu muro de montanhas, com a sua janela largamente aberta para o mar: é o cantão a que se chama Ática.
            Outras cidades, às dúzias, noutras molduras semelhantes. Entre estas cidades numerosas, múltiplas rivalidades: políticas, económicas – e a guerra ao cabo delas. Nunca se assinam tratados de paz entre cidades gregas, apenas tréguas: contratos a curto prazo, cinco anos, dez, trinta anos, o máximo. Mas antes de passado o prazo a guerra recomeçou. As guerras de trinta anos e mais são mais numerosas na história grega que as pazes de trinta anos.
            Mas a eterna rivalidade grega merece por vezes um nome mais belo: emulação. Emulação desportiva, cultural. O concurso é uma das formas preferidas da actividade grega. Os grandes concursos desportivos de Olímpia e outros santuários fazem largar as armas das mãos beligerantes. Durante estes dias de festa, os embaixadores, os atletas, as multidões circulam livremente por todas as estradas da Grécia. Há  também em todas as cidades formas múltiplas de concursos entre os cidadãos. Em Atenas, concursos de tragédias, de comédias, de poesia lírica.(...)
            A montanha protege e separa, o mar amedronta mas une. Os Gregos não estavam encerrados nos seus compartimentos montanhosos. O mar envolvia todo o país, penetrava profundamente nele. Havia pouquíssimos cantões, menos recuados, que o mar não atingisse.
            Mar temível, mas tentador e mais aliciante que qualquer outro. Sob um céu claro, na atmosfera límpida, o olhar do nauta descobre a terra duma ilha montanhosa a cento e cinqüenta quilómetros de distância. Vê-a como ‘um escudo pousado sobre o mar’.
            Um dos nomes que o mar toma em grego significa estrada. Ir pelo mar, é ir pela estrada. O mar Egeu é uma estrada que, de ilha em ilha, conduz o marinheiro da Europa à Ásia sem que ele perca nunca a terra de vista. Estas cadeias de ilhotas parecem calhaus lançados por garotos num regato para o atravessarem, saltando de um para outro. [3]







 Temporalidade, memória e literatura dialogam em perfeita harmonia e singularidade quando pensamos alguns aspectos de nossa existência. 



[1] Teogonia, a origem dos Deuses, p. 15.
[2] Idem.
[3] André Bonnard,  tradução de José Saramago, A Civilização Grega, p.18-22.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Educação, Linguagem & Pensamento


Mulher e Pensamento/Rose Marie Silva Haddad



Ana Maria Haddad Baptista é mestra e doutora em Comunicação e Semiótica. Pós-doutora em História da Ciência pela PUC/SP.     professoraanahb@gmail.com



Resumo

 Linguagem é todo e qualquer sistema de signos que servem à comunicação.  Depreende-se disso que existem muitas formas de linguagem. As sociedades da contemporaneidade, em diversos graus, querem fazer crer que a linguagem verbal, ou seja, a língua escrita, seja a forma mais importante de comunicação .Todavia, sabe-se, tal afirmação está carregada de uma carga ideológica que visa apenas a exclusão daqueles a quem não foi dada a oportunidade de escolaridade que possibilitasse a aprendizagem da língua.
Na verdade, não há hierarquia entre as diversas linguagens produzidas pelo homem. A linguagem musical, pictórica, teatral e outras são importantes. Nessa medida,  linguagens não verbais também são tão importantes quanto a verbal.
Este texto deverá refletir algumas perspectivas que julgamos importantes para se pensar questões de educação, linguagem e pensamento, assim como o papel da literatura na construção de conceitos a respeito da língua.



Introdução


Desde a Antiguidade as questões relacionadas com a linguagem intrigaram a humanidade. Uma das discussões mais importantes de que se tem registro, a respeito do assunto, está contida na grande obra clássica do Ocidente, ou seja, no Crátilo, Platão. Como era produzida a linguagem? Qual a origem dos nomes? Haveria uma semelhança entre os nomes e as coisas? Os nomes seriam meramente convencionais? Estas e outras questões já foram colocadas pelo homem há muitas centenas de anos.
De acordo com Platão, via Sócrates (2001:49) “as coisas devem ser nomeadas como lhes pertence por natureza serem nomeadas e por meio do que lhe devem sê-lo, e não como nós queremos; e assim, faremos e nomearemos melhor, de outra maneira não.” De  acordo com a cosmologia da Antiguidade Grega os nomes das coisas estariam contidos em sua própria natureza ou, na verdade, não houve escolha, e haveria convencionalidade na nomeação.  Lembremos que nesta etapa da humanidade havia um conceito de sujeito e de subjetividade bastante distinta do conceito atual. Ressalte-se que a discussão a respeito da arbitrariedade dos signos, ou não,  já estava presente em nossa cultura há muito tempo.
 Toda e qualquer linguagem é representativa, ou seja, ela não é o objeto que busca representar, com isso sempre haverá uma espécie de débito entre a linguagem e o objeto representado. A completude total de uma representação é um dos grandes limites de toda e qualquer linguagem. Pode-se afirmar que todas as linguagens possuem limites e possibilidades.

a.Língua e Linguagens

 As linguagens são processos externos ao homem. As linguagens são adquiridas de fora para dentro do homem. Processos exteriores ao homem que ao longo de sua existência poderão ou não interiorizá-los. De acordo com Santaella: “Já na aurora de seu processo evolutivo a espécie humana deu início à construção de sistemas sígnicos, que não são outra coisa senão prolongamentos, expansões cada vez mais complexas da habilidade comunicativa possibilitada pela língua.” (2007:202).
 As linguagens são processos de materialidade. Possuem dimensões de fisicalidade. Por exemplo: uma palavra. Há um aspecto de significado que seria o conceito do objeto e possui o significante que seria sua fisicalidade, isto é, o aspecto gráfico e sonoro. Modernamente as linguagens são divididas em verbais e não verbais.
 A linguagem verbal, por exemplo, tende a ser muito mais abstrata do que a linguagem visual. A maioria das linguagens verbais representam os sons. São as línguas fonéticas. Logo, num primeiro momento, o objeto pouco tem a ver com sua representação. Como um contraponto em relação às línguas de cunho fonética, há a língua chinesa. Esta língua representa, em grande parte, os objetos. Pode-se afirmar que há uma espécie de semelhança entre o objeto e sua representação. A língua japonesa possui, também, muitos elementos em comum com a língua chinesa. Orientais e ocidentais habitam esferas e dimensões de linguagens bastante distintas,  (KATO, 2012: 34)
Não há hierarquia entre as linguagens e, muito menos, entre as línguas. Não há superioridade linguística. Uma sociedade tecnicamente avançada não garante nada em termos linguísticos, assim como uma sociedade que possui poucos avanços tecnológicos pode, perfeitamente, possuir uma estrutura linguística altamente complexa. Eis uma herança bastante significativa, conforme é sabido,  que o Estruturalismo deixa para as sociedades.
Todas as linguagens se transformam. Não há regras, normas e formas fixas. As transformações que dão movimento às linguagens são absolutamente necessárias, visto que responsáveis por novas formas de se perceber o mundo. Novas formas de pensar e que buscam camadas sígnicas que atenuem os possíveis hiatos entre o objeto e sua representação. “A língua é o espelho da existência, mas também da alma”.  (ROSA, 1994: 105)
No Brasil houve, em especial, a partir da Semana de Arte Moderna (1922) uma grande preocupação dos escritores brasileiros em se criar uma literatura arejada e, consequentemente, uma língua portuguesa mais próxima dos brasileiros. A consciência, mais aguda, de que o Brasil possui todas as possibilidades de ter uma língua portuguesa com variedades singulares, visto, por exemplo, a sua formação étnica.   “Nestes quatrocentos anos de colonização literária recebemos a influência de muitos países. Sempre tentamos reproduzir com todas as minudências a língua, as ideias, a vida de outras terras. Não sei donde vem esse medo que temos de sermos nós mesmos. Queremos que nos tomem por outros.” (RAMOS, 2012: 168)
Não foi, naturalmente, somente Graciliano Ramos quem percebeu agudamente a necessidade do Brasil ser mais ele mesmo. Grandes escritores após o Movimento Modernista sentiram a mesma necessidade. Guimarães Rosa, por exemplo, em toda a sua obra foi um dos escritores que mais buscou a identidade de uma língua portuguesa brasileira. Que realmente exprimisse nossa alma. Nossos anseios. Nossos sonhos. Nossa forma tão singular de ser. De existir.


b. Linguagem e Pensamento


Ao falarmos de pensamento e linguagem uma primeira questão se coloca, a nosso ver, de extrema importância: todas as evidências, em diversos graus, indicam que o ser humano pode pensar somente a partir de uma linguagem. Contudo, lembramos, uma vez mais, que todas as linguagens possibilitam o pensamento. Seria muito discriminatório e pretensioso afirmarmos que  somente a linguagem verbal daria acesso ao ato efetivo de se pensar. Há vários casos de pessoas que pensaram por intermédio de imagens, como por exemplo, Leonardo da Vinci. Ele pensava, predominantemente, por imagens. Einstein nunca escondeu que suas ideias e grandes conceitos vinham por meio de imagens. Enfim, tudo indica que homem pensa somente a partir de uma linguagem, contudo, não necessariamente a partir da língua.
A linguagem é um eterno diálogo subjetivo mas que exige um repertório. O pensamento está associado ao pensamento. Não há como pensar sem linguagem. A linguagem exterioriza, materializa sentimentos, ideias e conceitos. Somente a partir de um repertório adquirido, de fora para dentro, é possível, por exemplo, a criação de novas palavras. Consequentemente,  de novos conceitos. Nomear o mundo. Nomear o ser. Nomear a existência. Novas formas de pertencimento e de dialogicidade.  (FREIRE, 2011: 97. A liberdade de expressão e a posse de si somente poderá ocorrer a partir do momento em que  o homem tenha domínio de linguagem.
Um outro ponto importante a ser considerado: cada linguagem exige de nós solicitações cognitivas diferentes. Ao vermos a figura de um elefante pouco precisamos imaginar para que nosso pensamento se ligue imediatamente ao conceito de que estamos frente a um animal enorme, assim como de frente a características relacionadas a um animal de grande porte. Quando lemos a palavra elefante somos mais solicitados. Precisamos imaginar um elefante. Um filme, uma música, um teatro são linguagens  que exigem de nós posturas e processsos interpretativos diferentes.
Contudo, um fato é inegável. A língua é a linguagem que, socialmente, predomina. De acordo com Hjelmslev:

Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida quotidiana aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, ela é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. (2009:01)


A língua é a linguagem que predomina em todas as esferas sociais. Mais do que nunca domínio de língua é, de maneira incontestável, domínio de mundo, de modelos e outros elementos tão necessários (inclusive como forma de sobrevivência) à contemporaneidade. Língua é o domínio da palavra. Pode ser, sabe-se, um grande instrumento de libertação, mas também de opressão. Lembremos, o grande exemplo de literatura, colocado por Graciliano Ramos: o personagem Fabiano de Vidas Secas. Fabiano é a grande imagem do oprimido pela palavra. Pelo pensamento vazio visto não ter linguagem para poder se expressar. Fabiano é a figura do homem sem defesa porque não sabe falar como aqueles que lhe oprimem e o colocam na cadeia.
Nas palavras de Freire:

Quando tentamos um adentramento no diálogo como fenômeno humano, se nos revela algo que poderemos dizer ser ele mesmo: a palavra . Mas, ao encontramos a palavra, na análise do diálogo, com algo mais do que um meio para que ele se faça, se nos impõe buscar, também , seus elementos constitutivos.
Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimensões: ação e   reflexão  , de tal forma solidárias, em uma  interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra. Não há palavra verdadeira que não seja práxis . Daí dizer que a palavra verdadeira seja transformar o mundo. (2005:80)

A afirmação de Paulo Freire é essencial, sob nosso ponto de vista, para se pensar muitas coisas importantes a respeito da palavra: uma delas, evidentemente, é em relação ao espaço escolar em que se dá a palavra e como esta se configura. A escola, de um modo geral, pouco distingue pontos fundamentais a respeito de língua. A primeira delas: considerar com  respeito o repertório trazido pelo aluno e o outro ponto: mostrar a norma culta, adequada e necessária para os estudantes. Muitos educadores confundem respeito ao repertório linguístico do educando com permissividade. A norma culta e socialmente aceita existe e deve ser cumprida e exercitada, caso contrário, o nosso educando será excluído do sistema. Isso significa, na esteira de Paulo Freire, realmente, dar a palavra. A palavra em sua práxis tem um significado muito amplo. O educador deve colocar em prática o uso da palavra e não somente apregoá-la. Tal fato envolve uma série de macanismos. O principal deles: dar o espaço necessário para o educando. Dar a  ele espaço de  colocar suas ideias, seus conceitos, enfim, a sua vivência.

Nas palavras de Freire:

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes , a exigir dele novo pronunciar.
Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.
Mas, se dizer a palavra verdadeira que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens.  (2005:90)


Quem pode dar a palavra? Somente aquele que a possui. Aquele que, diferentemente, de Fabiano, Vidas Secas, a domina, de fato. Contudo, mesmo tendo a palavra se nnao houver o espaço para que ela se legitime, todo o processo cai num grande vazio. Cai no silêncio sem remédio. A existência humana somente pode se completar, em grande parte, por meio da palavra. Palavra legitimada. Exercida. Falsas palavras podem ser desmascaradas, desveladas a partir de um domínio mais amplo da linguagem.


c. Linguagem literária e pensamento

Diferentemente do que a maioria, de senso comum, afirma, a Literatura não é um processo meramente subjetivo. A Literatura não existe apenas como uma mera válvula de escape que leve o homem a sonhar. Ou: distração para uma mente cansada. A literatura de Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Machado de Assis, Guimarães Rosa e de muitos outros são a prova concreta de que Literatura possui algo mais. Foge aos objetivos deste texto explicitarmos as diferentes dimensões cognitivas em que atuam a Literatura.
Vamos à nossa proposta: em que medida a linguagem literária está envolvida diretamente com o pensamento? A Literatura é um dos únicos caminhos possíveis para aproximar significado do significante. Em outras palavras: um dos únicos atalhos pelos quais o objeto e sua representação ficam mais próximos. Quanto mais a linguagem for carregada pela objetividade, maior será sua distância daquilo que se pretende enunciar. Eis uma grande questão, nada original, mas que merece um pouco mais de atenção.
Nas palavras de Foucault:

Crê-se atingir a essência mesma da literatura, interrogando-a não mais ao nível do que ela diz, mas na sua forma significante: fazendo-o permanece-se no estatuto clássico da linguagem. Na idade moderna, a literatura é o que compensa (e não o que confirma) o funcionamento significativo da linguagem. Através dela o ser da linguagem brilha de novo nos limites da cultura ocidental – e em seu coração – pois ele é, desde o século XVI, aquilo que é mais estranho; porém, desde esse mesmo século XVI, ele está no centro do que ela recobriu. (…) A partir do século XIX, a literatura repõe  à luz a linguagem no seu ser : não, porém, tal como ela aparecia ainda no final do Renascimento. Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura. (1990: 60)


A literatura, em especial, após o século XIX, quando a abstração particularmente nas ciências predomina, inicia um movimento, sem precedentes na história da humanidade, de aproximar o significado do significante, ou seja, de tornar o objeto e sua representação cada vez mais perto do pensamento, mais próxima daquilo que intenta representar. Dar voz à literatura, é dar voz e vez à palavra. Eis um dos grandes motivos pelos quais a literatura deve ser inseparável do processo educacional em todos os graus possíveis. De acordo com Mia Couto: “Entender a origem e a história das palavras faz-nos ser mais donos de um idioma que é nosso e que não apenas dá voz ao pensamento como já é próprio do pensamento. Ao sermos donos das palavras somos mais donos da nossa existência.” (2011: 97) Cremos que os educadores, de todas as esferas do conhecimento, devem ter a total consciência de que parte das grandes mudanças e transformações partem da palavra. E seu total conhecimento, de fato, se dá pela literatura. Aquela literatura que realmente dá voz a todos, como por exemplo, a literatura de Graciliano Ramos, Lima Barreto, Guimarães Rosa, Mia Couto. Estas literaturas, como é de conhecimento geral, são consagradas não por histórias que contam. Ou apenas pelos dramas que colocam. Mas, fundamentalmente, pela forma como contam. Refletindo a língua, pensando o pensamento, pensando os conceitos, pensando a linguagem como um todo.


Considerações Finais &  Fundamentais


O pensamento necessita de um suporte que o materialize. Não há pensamento sem linguagem. Cada forma de linguagem estrutura de forma distinta  os pensares. As línguas fonéticas como o português, inglês, francês e a maioria das línguas ocidentais são fonéticas, ou seja, extremamente abstratas e como tais exigem um grande grau  de maturação para serem apreendidas. Nenhum educador poderia jogar tal processo ao esquecimento. As línguas silábicas e, particularmente, as línguas ideogramáticas estão muito mais próximas do objeto que buscam representar. Depreende-se disso que estão mais próximas das formulações de pensamento. Além disso, lembremos Guimarães Rosa: “Cada língua guarda em si uma verdade escondida”. (1994:51)
A aprendizagem de uma língua, efetivamente, exige dos educadores uma postura de completo respeito ao repertório do aluno, visto que é fundamental para a interiorização  de uma língua o repertório, em todos os níveis, trazido pelo aluno.
Um dos únicos caminhos possíveis para a apreensão da língua é por meio da literatura, visto ser o papel primordial da literatura aproximar o objeto de sua representanção. Somente a literatura, todas as evidências indicam,  nos conduz aos caminhos (mesmo que bifurcados), de fato, de uma representação mais próxima daquilo que pensamos.
A literatura verdadeira dispensa a gramática ensinada de maneira sistemática. Bem dizia Guimarães Rosa: “(…) não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia, ciência linguística, forma inventadas pelos inimigos da poesia.” (1994:34) A lógica da gramática estritamente gramaticosa subtrai os principais espaços de criatividade e inventividade possibilitadas pelo pensamento e pela linguagem. A grande Literatura indica, por diversas vias, o quanto é autoritário e opressor falar por alguém. Nessa medida, lembremos: dar a palavra! Nada melhor do que dar a palavra a quem merece, de fato. Eis um dos maiores desafios da Educação em todos os tempos.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo,Cia das Letras: 2011.
DELEUZE, Gilles. Critique et Clinique. Paris, Les Éditions de Minuit: 1993.
______________. Lógica do Sentido. 4a. ed. São Paulo, Perspectiva: 1998.
______________. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo, Editora 34: 1992.
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris, Éditions Gallimard: 1966.
_________________. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 5 ed. São Paulo, Martins Fontes: 1990.
GRANET, Marcel. O pensamento Chinês. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Contraponto: 1997.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 2011.
_____________. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005.
HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução de J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo, Perspectiva: 2009.
____________. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 2005.
KATO, Shuichi. Tempo e Espaço na Cultura Japonesa. Tradução de Neide Nagae e Fernando Chamas. São Paulo, Editora Estação Liberdade: 2012.
PLATÃO. Crátilo. Tradução de José Andrade dos Santos. Lisboa, Instituto Piaget: 1997.
SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo, Editora Paulus: 2007.
RAMOS, Graciliano. Garranchos: textos inéditos de Graciliano Ramos. Org. de Thiago Mio Salla. Rio de Janeiro, Record Ltda: 2012.
________________. Vidas Secas. Rio de Janeiro, Record Ltda: 1998.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Tradução de M.F. Sá Correia. Porto, RÉS-Editora, Ltda: [s.d.].
ROSA, Guimarães Rosa. Ficção completa, em dois volumes. Rio de Janeiro, Nova Aguilar: 1994.
SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote II. São Paulo, Cia das Letras: 1999.


 Obs: Este texto já foi publicado,  no mês de novembro de 2013, em Anais Completos de Congresso.