Néctar de Letras
2. O que é leitura?
Ouçamos o grandioso escritor
português António Lobo Antunes:
Receita para me lerem
Sempre que alguém afirma
ter lido um livro meu fico decepcio-
nado com o erro. É que os
meus livros não são para ser lidos no
sentido em que usualmente
se chama ler: a única forma
parece-me
de abordar os romances
que escrevo é apanhá-los do
mesmo
modo que se apanha uma doença. Dizia-se de Bjorn
Borg,
comparando-o com outros tenistas, que estes jogavam té-
nis
enquanto Borg jogava outra coisa. Aquilo a que por como-
didade
chamei romances, como poderia ter chamado poemas,
visões,
o que quiser, apenas se entenderão se os tomarem por
outra
coisa. A pessoa tem que renunciar à sua própria chave
aquela que todos temos para abrir a
vida, a nossa e a
alheia
e utilizar a chave que o texto lhe
oferece. De outra ma-
neira
torna-se incompreensível, dado que as palavras são ape-
nas
signos de sentimentos íntimos, e as personagens, situações
e
intriga os pretextos de superfície que utilizo para conduzir ao
fundo
avesso da alma. A verdadeira aventura que proponho é
aquela
que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao negrume
do
inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender
isto
aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos
importantes
dos livros : o país, a relação homem-mulher, o pro-
blema
da identidade e da procura dela, África e a brutalidade da
exploração
colonial, etc., temas se calhar muito importantes do
ponto
de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada
têm
a ver com o meu trabalho. O mais que, em geral, recebemos
da
vida é um conhecimento dela que chega demasiado tarde.
Por
isso não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem
conclusões
definidas: são, somente, símbolos materiais de ilusões
fantásticas,
a racionalidade truncada que é a nossa.
É preciso que
se
abandonem ao seu aparente desleixo, às suspensões, às longas
elipses,
ao assombrado vaivém de ondas que, pouco
e pouco, os
levarão
ao encontro da treva fatal, indispensável ao renascimen-
to
e à renovação do espírito. É necessário que a confiança nos
valores
comuns se dissolva página a página, que a nossa engano-
sa
coesão interior vá perdendo gradualmente o sentido que não
possui
e todavia lhe dávamos, para que outra ordem nasça desse
choque,
pode ser que amargo mas inevitável. Gostaria que os
meus
romances não estivessem nas livrarias ao lado dos outros,
mas
afastados e numa caixa hermética, para não contagiarem
as
narrativas alheias ou os leitores desprevenidos: é que sai caro
buscar
uma mentira e encontrar uma verdade. Caminhem pelas
minhas
páginas como num sonho porque é nesse sonho, nas suas
claridades
e nas suas sombras, que se irão achando os significa-
dos
do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos
instintos
de claridade e às sombras da vossa pré-história. E, uma
vez
acabada a viagem
e fechado o livro
convalesça. Exijo que o leitor tenha
uma voz entre as
vozes
do romance
ou
poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar
a
fim de poder ter assento no meio dos demónios e dos
anjos
da terra. Outra abordagem do que escrevo é
limita-se a ser
uma leitura, não uma iniciação ao ermo onde o
visitante
terá
a sua carne consumida na solidão e na alegria. Isto não se
torna
complicado se tomarem a obra como a tal doença que aci-
ma
referi: verão que regressaram de vocês mesmos carregados de
despojos.
Alguns
quase todos
os mal entendidos em relação ao que faço,
derivam do
facto
de abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar
qualquer
narrativa. E a surpresa vem de não existir narrativa no
sentido
comum do termo, mas apenas largos círculos concên-
tricos
que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufo-
cam-nos
aparentemente para melhor respirarmos. Abandonem
as
vossas roupas de criaturas civilizadas, cheias de restrições, e
permitam-se
escutar a voz do corpo. Reparem como as figuras
que
povoam o que lhe digo não são descritas e quase não possuem
relevo:
é que se trata de vocês mesmos. Disse em tempos que o
livro
ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos:
reflectem-se
a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual
dos
dois somos. Tento que cada um seja ambos e regressemos
desses
espelhos como quem regressa da caverna do que era. É
a
única salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras,
a
única que me interessa. Era altura de ser claro acerca do que
penso
sobre a arte de escrever um romance, eu que em geral
respondo
às perguntas dos jornalistas com uma ligeireza diver-
tida,
por se me afigurarem supérfluas: assim que conhecemos
as
respostas, todas as questões se tornaram inimportantes. E, por
favor,
abandonem a faculdade de julgar: logo que se compreen-
de,
o julgamento termina, e quedamo-nos, assombrados, diante
da
luminosa facilidade de tudo. Porque os meus romances são
muito
mais simples do que parecem: a experiência da antropofa-
gia
através da fome continuada, e a luta contra as aventuras sem
cálculo
mas com sentido prático que os romances em geral são.
O
problema é faltar-lhes o essencial: a intensa dignidade de uma
criatura
inteira. Faulkner, de quem já não gosto o que gostava,
dizia
ter descoberto que escrever é uma muito bela coisa: faz os
homens
caminharem sobre as patas traseiras e projectarem uma
enorme
sombra. Peço-lhes que dêem por ela, compreendam que
vos
pertence e, além de compreenderem que vos pertence, é o
que
pode, no melhor dos casos, dar nexo à vossa vida.
António Lobo Antunes é considerado,
nos dias de hoje, uma das maiores expressões literárias de Portugal. Seus
livros são facilmente encontrados no Brasil, evidentemente, nas boas livrarias.
Recomendo-o veementemente. Poucas vozes
literárias vivas possuem o seu poder de expressividade. Autor sensível. Jamais
se acomoda. Ou seja, um escritor, como poucos, que busca sua própria renovação.
Lembremos: os bons artistas são aqueles que jamais se sentem plenamente
satisfeitos. Estão sempre à procura de novas formas, novos conteúdos. Quem ganha
com isso? A humanidade.
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