segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Néctar de Letras


2. O que é leitura?

Ouçamos o grandioso escritor português António Lobo Antunes:


Receita para me lerem

Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcio-
nado com o erro. É que os meus livros não são para ser lidos no
sentido em que usualmente se chama ler: a única forma
 parece-me
de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do
           mesmo modo que se apanha uma doença. Dizia-se de Bjorn
            Borg, comparando-o com outros tenistas, que estes jogavam té-
            nis enquanto Borg jogava outra coisa. Aquilo a que por como-
            didade chamei romances, como poderia ter chamado poemas,
            visões, o que quiser, apenas se entenderão se os tomarem por
            outra coisa. A pessoa tem que renunciar à sua própria chave
                       aquela que todos temos para abrir a vida, a nossa e a
            alheia
                       e utilizar a chave que o texto lhe oferece. De outra ma-
            neira torna-se incompreensível, dado que as palavras são ape-
            nas signos de sentimentos íntimos, e as personagens, situações
            e intriga os pretextos de superfície que utilizo para conduzir ao
            fundo avesso da alma. A verdadeira aventura que proponho é
            aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao negrume
            do inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender
            isto aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos
            importantes dos livros : o país, a relação homem-mulher, o pro-
            blema da identidade e da procura dela, África e a brutalidade da
            exploração colonial, etc., temas se calhar muito importantes do
            ponto de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada
            têm a ver com o meu trabalho. O mais que, em geral, recebemos
            da vida é um conhecimento dela que chega demasiado tarde.
            Por isso não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem
            conclusões definidas: são, somente, símbolos materiais de ilusões
            fantásticas, a racionalidade truncada que é  a nossa. É preciso que
            se abandonem ao seu aparente desleixo, às suspensões, às longas
            elipses, ao assombrado vaivém de ondas que, pouco  e pouco, os
            levarão ao encontro da treva fatal, indispensável ao renascimen-
            to e à renovação do espírito. É necessário que a confiança nos
            valores comuns se dissolva página a página, que a nossa engano-
            sa coesão interior vá perdendo gradualmente o sentido que não
            possui e todavia lhe dávamos, para que outra ordem nasça desse
            choque, pode ser que amargo mas inevitável. Gostaria que os
            meus romances não estivessem nas livrarias ao lado dos outros,
            mas afastados e numa caixa hermética, para não contagiarem
            as narrativas alheias ou os leitores desprevenidos: é que sai caro
            buscar uma mentira e encontrar uma verdade. Caminhem pelas
            minhas páginas como num sonho porque é nesse sonho, nas suas
            claridades e nas suas sombras, que se irão achando os significa-
            dos do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos
            instintos de claridade e às sombras da vossa pré-história. E, uma
            vez acabada a viagem
                      e fechado o livro
                      convalesça. Exijo que o leitor tenha uma voz entre as
            vozes do romance
                        ou poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar
                        a fim de poder ter assento no meio dos demónios e dos
            anjos da terra. Outra abordagem do que escrevo é
                          limita-se a ser
                          uma leitura, não uma iniciação ao ermo onde o visitante
            terá a sua carne consumida na solidão e na alegria. Isto não se
            torna complicado se tomarem a obra como a tal doença que aci-
            ma referi: verão que regressaram de vocês mesmos carregados de
            despojos. Alguns
                            quase todos
                            os mal entendidos em relação ao que faço, derivam do
            facto de abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar
            qualquer narrativa. E a surpresa vem de não existir narrativa no
            sentido comum do termo, mas apenas largos círculos concên-
            tricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufo-
            cam-nos aparentemente para melhor respirarmos. Abandonem
            as vossas roupas de criaturas civilizadas, cheias de restrições, e
            permitam-se escutar a voz do corpo. Reparem como as figuras
            que povoam o que lhe digo não são descritas e quase não possuem
            relevo: é que se trata de vocês mesmos. Disse em tempos que o
            livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos:
            reflectem-se a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual
            dos dois somos. Tento que cada um seja ambos e regressemos
            desses espelhos como quem regressa da caverna do que era. É
            a única salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras,
            a única que me interessa. Era altura de ser claro acerca do que
            penso sobre a arte de escrever um romance, eu que em geral
            respondo às perguntas dos jornalistas com uma ligeireza diver-
            tida, por se me afigurarem supérfluas: assim que conhecemos
            as respostas, todas as questões se tornaram inimportantes. E, por
            favor, abandonem a faculdade de julgar: logo que se compreen-
            de, o julgamento termina, e quedamo-nos, assombrados, diante
            da luminosa facilidade de tudo. Porque os meus romances são
            muito mais simples do que parecem: a experiência da antropofa-
            gia através da fome continuada, e a luta contra as aventuras sem
            cálculo mas com sentido prático que os romances em geral são.
            O problema é faltar-lhes o essencial: a intensa dignidade de uma
            criatura inteira. Faulkner, de quem já não gosto o que gostava,
            dizia ter descoberto que escrever é uma muito bela coisa: faz os
            homens caminharem sobre as patas traseiras e projectarem uma
            enorme sombra. Peço-lhes que dêem por ela, compreendam que
            vos pertence e, além de compreenderem que vos pertence, é o
            que pode, no melhor dos casos, dar nexo à vossa vida.

António Lobo Antunes é considerado, nos dias de hoje, uma das maiores expressões literárias de Portugal. Seus livros são facilmente encontrados no Brasil, evidentemente, nas boas livrarias. Recomendo-o  veementemente. Poucas vozes literárias vivas possuem o seu poder de expressividade. Autor sensível. Jamais se acomoda. Ou seja, um escritor, como poucos, que busca sua própria renovação. Lembremos: os bons artistas são aqueles que jamais se sentem plenamente satisfeitos. Estão sempre à procura de novas formas, novos conteúdos. Quem ganha com isso? A humanidade.        
                       


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