Simone
de Beauvoir: a perspectiva de uma literatura aguda
A Literatura pode e deve comportar, natural
ou intencionalmente, outras dimensões além
daquilo que a caracteriza, ou seja, graus de literariedade. Em outras
palavras: graus de poeticidade nos mais diversos níveis. Nunca é demais lembrar
que a literatura somente pode ser considerada como tal se houver uma função
poética predominante que a defina, que a
caracterize, ou, estaremos diante de um manual de instruções, só para
ficarmos com um exemplo.
Os
Mandarins, Simone de Beauvoir (1908-1986),
excelente tradução de Hélio de Sousa, Editora Nova Fronteira, eis uma obra clássica,
no sentido estrito da expressão, que merece ser lida e relida ao longo de
nossas vidas. Independente dos prêmios e elogios que a obra – considerada uma das melhoras
escritas pela autora francesa – tenha recebido, é leitura obrigatória. Por quê?
Mais do que nunca porque Simone de Beauvoir
anda esquecida, inclusive, injustamente, pelos meios acadêmicos aos quais ela
pertenceu com dignidade. Foi professora universitária, escritora e filósofa.
Acrescente-se a tudo isso uma atuação ativa, revolucionária, nada passiva, em tudo que carregou o seu nome. Simone jamais
ficou sentada num escritório ou biblioteca em níveis meramente contemplativos
ou indagativos. Lutou e interveio em importantes questões a favor de
igualdades, sobretudo, em relação à condição das mulheres.
Os
Mandarins: uma escritura que carrega a atmosfera
sufocante de uma Paris arrasada pela Segunda Guerra Mundial. Danos de uma guerra cujos gritos, ecos e o
ressoar da fome e misérias foram ouvidos, de fato e de perto, pelos
parisienses.
Simone de Beauvoir busca os fragmentos, em
todos os graus, das interioridades humanas dos sobreviventes e daqueles que
mais direta ou indiretamente participaram da Segunda Guerra Mundial. Quase todos
os personagens da obra fizeram ou fazem parte de seu círculo. E daí a grande
implicação do livro com a filosofia: pensamentos, intenções, buscas dos
intelectuais que vão tomar novos rumos em suas próprias vidas, mas possuem uma preocupação : o que fazer para que
o futuro tenha melhores perspectivas? Qual seria o futuro? O que será da
Europa, naquele momento, totalmente mutilada? A quem pertencerá de fato a
Europa? Como reconstruí-la? Estas e outras questões, por intermédio das mais
diversas situações, a escritora francesa coloca em xeque.
Em todas as propostas expostas pela
escritora francesa perpassam claramente um agudo questionamento a respeito de
valores éticos e morais. Tudo isso sem contar as discussões políticas
implicadas, em especial, ao papel e objetivos dos intelectuais num clima em que
quase tudo morreu. Sonhos. Pessoas. Construções. Temporalidades. “Sobreviver, morar do outro lado da vida: no
final, é muito confortável. Não se espera mais nada, não se teme mais nada e
todas as horas parecem recordações. Foi o que descobri durante a ausência de
Nadine: que tranquilidade! As portas do apartamento não batiam mais, eu podia
conversar com Robert sem frustar ninguém e ficar acordada até tarde da noite,
sem que batessem à minha porta; aproveitei isso. Gostava de surpreender o
passado no fundo de cada instante. Um minuto de insônia bastava: a janela
aberta, deixando ver três estrelas, ressuscitava todos os invernos, os campos
gelados.”
Finitude, presente, passado, enquanto
temporalidades transitórias são as concepções que podem ser destacadas neste
livro fascinante. Da objetividade de um tempo a dúvidas interiores que não cessam de agulhar a difícil construção,
individual e coletiva, das histórias das subjetividades humanas.
Nessa medida, nós, contemporâneos, ao final
desta leitura, ficamos quase perplexos. Vemos que a maioria dos questionamentos
da escritura de Simone bifurcaram-se por
jardins tortuosos, cruéis. Contudo, uma coisa fica muito clara: o futuro
realmente, em grande parte, não admite previsibilidades.
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