Notas sobre a inexatidão da matemática
Nota importante: este texto foi publicado pela Revista da Academia de Letras, setembro/no.88/2016.
Ana Maria Haddad Baptista
O imaginário
{nuvem bosque pensamento}
é o atalho cristalino da matemática
Marco Lucchesi
O matemático é o único em nosso círculo a quem receamos
desagradar.
Goethe
Matemática e imaginário
Ao lermos o famoso diálogo entre Guimarães
Rosa e Günter Lorenz, realizado em 1965, percebe-se, entre tantas outras
coisas, a abrangência da linguagem matemática. O nosso grande mestre da
literatura faz uma leitura, à época, sobre o futuro da Europa e da humanidade
nas seguintes palavras: "É como uma equação com várias incógnitas. A
Europa é pequena, mas seus habitantes são ativos e, além disso, têm a seu favor
uma grande tradição. E entretanto os europeus não têm qualquer influência sobre
essas incógnitas que determinam o futuro de seu continente. O 'x' e o 'y' desta
questão decidirão o amanhã, tanto é assim que quase já se pode dizer hoje. A
América Latina talvez não seja a incógnita principal, o 'x', mas provavelmente
será o 'y', uma incógnita secundária muito importante. Pela matemática, sabe-se
que uma equação não se resolve se uma segunda incógnita não for eliminada.
Suponhamos agora que a América Latina seja a tal incógnita 'y'. Com isso a
Europa está em um ponto culminante para o seu futuro. E não estou falando
apenas das necessidades e do potencial econômico de meu continente. Você sabe
que para nós, os latino- americanos, nos sentimos muito ligados à Europa. Para
mim, Cordisburgo foi sempre uma Europa em miniatura. Amamos a Europa como, por
exemplo, se ama uma avó. Por isso espero que a Europa reconheça a equação e
leve em conta o 'y' " [1].
E com isto me vem o prazer de pensar as incógnitas, as variáveis, os conjuntos
infinitos e tudo que me carregue às incertezas, ao imponderável, aos paradoxos,
às impossíveis verdades e, finalmente, às indeterminações. Porque levam-me ao
grande reino das improváveis. Das inconstâncias. E que, no
final das contas, são sempre próximas do que é
imprevisível e das irresponsabilidades contidas na liberdade. Onde
o reino de variedade da vida se mostra mais rica e as grandes novidades brotam.
Descobertas inesperadas. Assim como prefiro pensar na intensidade inexata de
uma qualidade do que na pretensa (sempre) exatidão da quantidade.
Gosto de lembrar das equações de
Dirac, na leitura dos grandes lúcidos, uma equação de primeira ordem. Adensa a
questão da probabilidade. Enfraquece a determinação. Desafia as in-certezas. Na leitura poética de Bachelard: "as
matrizes solidarizam dialeticamente os fenômenos propagados dando a cada um o
que lhe cabe, fixando exatamente a sua fase relativa. Em vez da melodia
matemática que outrora acompanhava o trabalho do físico, é toda uma harmonia
que romanceia matematicamente a propagação" [2].
E, desta perspectiva, o matemático, na verdade, deve ter a direção de um
quarteto. "Em suma, a arte poética da Física faz-se com números, com
grupos, com spins, excluindo as distribuições monótonas, os quanta repetidos [3]
.
As invariáveis, as constantes, conjuntos
finitos, equivalências, em grande parte, me amarguram. Embora saibamos necessárias para a estruturação, sob o ponto
de vista da física, do real. Mas já apontam, via de regra, para um resultado
quase final.
A matemática permeia, de longe e de perto,
o universo plural que nos rodeia. "O
caminho e os caminhos...Dezenas de viagens por todo o país, centenas de fitas
cassete gravadas, milhares de metros de fita. Quinhentos encontros; depois
parei de contar, os rostos desapareceram da memória, só as vozes ficavam" [4].
Entre os universos, claro, em diversos graus, o da literatura. Prosa. Verso. Quantidade. Qualidade.
Na maioria das vezes, a matemática é
percebida como uma área isolada e reduzida somente a números e cálculos. Isso
faz com que estudantes e pessoas em geral tenham um verdadeiro horror a ela. A
matemática, ainda nos dias de hoje, é a vilã. Um primo indesejável. Professores
da área (a maioria) fazem questão de agudizar o terror pelos cálculos
imediatos. Complicam as avaliações para embaralhar os estudantes. E, com isso,
adicionando outros fatos e multiplicando as variáveis, apesar dos esforços de
muitos lúcidos em colocá-la em permanente diálogo com outras áreas, a situação
ainda é bastante precária em todas as dimensões.
Naturalmente existem muitas
exceções. Lembremos de Ubiratan D'Ambrosio em sua luta constante por uma
matemática humanizada. Buscando, sempre, o diálogo necessário entre a
matemática e outras áreas do conhecimento.
Lembremos, com muita alegria e
satisfação, de Inácio de Loyola Brandão
quando nos relata (em tom irônico e delicioso) que, em grande parte, tornou-se
um escritor graças a um professor de matemática. Quando, em uma entrevista, lhe perguntaram
porque era um escritor declara [5]:
"Escuto essa pergunta muitas vezes. A verdade é que tive uma experiência
fantástica. Eu tive grandes professores. Um deles me marcou profundamente."
E relata um dos motivos pelos quais deve sua carreira de escritor a um
professor. Brandão diz que quando cursava, em sua época, o científico
(atualmente o ciclo denominado ensino médio) teve uma grande experiência.
Embora fosse uma nulidade em química, física, matemática e biologia a escolha
pelo científico se deu por uma opção de comodidade ( o autor declara que a
fila, no último dia da matrícula, do científico era bem menor e ele não queria
perder um jogo de futebol de salão) e, desta forma, optou pelo curso científico.
Declara Brandão que no último ano do
curso teve que fazer um exame oral de matemática. Os famosos exames orais de
antigamente em que aluno e professor tinham que se encarar frente a frente.
Observe-se, de acordo com o escritor, que o curso cuja duração era de 3 anos, ele havia feito em 5. O professor de
matemática, Ulisses, "era severíssimo, bravíssimo, mas muito irônico"
[6]. O professor perguntou ao escritor de quanto
ele precisava para passar. E ele precisava 'apenas' de 9,7. O professor fez uma
proposta: ou tudo ou nada! Em outras palavras:
0 ou 10! Brandão, que nada tinha
a perder, topou a parada. O professor Ulisses disse que lhe daria para resolver
uma equação muito difícil que teria
resolvido em sala de aula enquanto Brandão lia um livro ( e o autor confirma
dizendo que era Moby Dick). E, nessa medida, o professor coloca a equação na
lousa. Havia um público. "Um grupo de meninas, todas lindas, frescas e
perfumadas, que ficaram me olhando" [7].
E de repente a equação na lousa para ser resolvida. Brandão confessa que não
tinha noção de como iria resolver aquilo. Mas teve uma ideia. Colocou no quadro
todos os símbolos matemáticos que lhe vinham à memória. Raiz quadrada, chaves,
colchetes, logaritmo de senos e cossenos, triangulozinhos e tudo que conhecia
em termos de linguagem matemática. Teve, inclusive, a audácia de chegar a um
resultado.
Concluído o exercício chamou o
professor Ulisses que olhou para o quadro (parecia, segundo Brandão, um livro de
matemática ilustrado). Após o professor ter conferido o resultado como um todo
colocou, (no próprio quadro) , a nota 10. E nisso as meninas ficaram
maravilhadas! Comenta que até hoje as meninas daquele tempo, hoje vovozinhas,
lembram o fato (o professor Ulisses morreu). Brandão, naturalmente, não acreditou
na nota. Mas o professor confirmou: 10! E, finalmente, a sentença definitiva do
mestre [8]:
"É 10, 10 pela fantasia, 10 pela invenção, 10 pelo delírio, 10 pela
imaginação. Vai embora, Ignácio, porque o seu mundo não é o da exata. Teu mundo
é o da imaginação." Desde aquele ano (1956), segundo o escritor, vive da
imaginação e da fantasia e é isso que dá grande prazer.
Como podemos avaliar a atitude do
professor Ulisses? Parece quase uma fantasia de Brandão o ocorrido, visto que
estudou em uma época em que as concessões eram quase impossíveis. No entanto o
professor de matemática conseguiu se despojar de várias máscaras e intuir que
estava diante de um possível escritor que, sem dúvida, veio a se tornar Ignácio
de Loyola Brandão. O espantoso na atitude do professor é que mesmo sendo da
área de matemática, percebeu que ali estava um caso potencial de literatura.
Por um outro lado, o professor Ulisses desprezava, pelo relato do
escritor, a imaginação, inexatidão e,
sobretudo, a poesia da matemática.
Da qualidade, da quantidade, da diferença:
a inexatidão
Alterna-nos
Bachelard de que uma das grandes infelicidades do filósofo da qualidade é se
ver obrigado e estar submetido a uma linguagem que "exalta a clareza das
qualidades nitidamente quantificadas como número e extensão" [9].
Em diversos momentos do conjunto de suas obras, declara que devemos
adotar como um postulado da epistemologia o processo inacabado do
conhecimento. Na verdade, não podemos atingir, jamais, a totalidade de um
conhecimento, inclusive, nas denominadas ciências exatas. Há uma
impossibilidade diante do real de o apreendermos em seu todo. E com isso nada
escapa das aproximações. Inclusive a matemática. O conhecimento está sempre em
movimento, fluxo e daí, entre outros fatores, a reorganização diante do real.
Como se o real fosse uma dimensão insubmissa à pretensa exatidão. Continuamente inesgotável! Diante do exposto
há uma questão, bastante intrigante, ou seja, a famosa discussão, mas, sempre
atual, em torno de quantidade e qualidade. Ora, num primeiro momento somos
seduzidos a pensar que a quantidade expressa a qualidade. Grandes pensadores já
pensaram nisso (entre eles Bergson). Mas como escapar de tal 'armadilha' ? A
qualidade nos remete ao conceito de qualidade pura, pode-se pensar na apreensão
direta da musicalidade, na apreensão direta do tempo, da memória e, em
especial, pensarmos, na delicadeza conceitual, da primeiridade de Peirce. O inanalisável.
Intocável. No entanto, se caminharmos pelas trilhas (verdadeiras melodias) de
Bachelard, nada escapa da admissão de que a qualidade pura possui em si uma
característica que a leva à classificação [10].
Conclui-se, parcialmente, que a percepção não possui acuidade e nem exatidão
que possam justificar a classificação no qualitativo, se pensarmos, de acordo
com Bachelard, que o contínuo qualitativo se traduz pela mudança. O nosso
grande pensador vai mais longe quando declara que a matemática que insiste em
submeter as relações sensíveis a uma adaptação à medida é, simplesmente, pobre.
E no entanto, adverte, a medida é traduzida como a base da aritmetização da
experiência, o que, de certo prisma, justificaria a ontologia científica, que
por sua vez não justifica sua solidez devido à pobreza de seu princípio.
Das possíveis conclusões
Lembro, não sem alguma amargura, da
advertência de Sabato. Ou seja, de que estamos condenados a contemplar
verdadeiras grosserias das encarnações das formas puras (em especial as
colocadas por Platão). As grosserias estão em nosso universo cotidiano, e como
se sabe, fluente e cheio de contradições. As pretensas ciências exatas do peso,
dos cálculos e da medida, a todo momento estão nos alertando, verdade seja
dita, que existem muitas ilusões, erros e incertezas diante das cobiçadas
exatidões. A magnitude de um pensador, seja ele de qualquer área do
conhecimento, consiste em admitir de que estamos muito distantes de um
conhecimento acabado e já concluído. O que não invalida, certamente, a leitura
do que nos é permitido, do real. Nessa medida, a matemática é muito mais
inexata do que se supõe.
Perceber a matemática em sua
grandiosidade e abrangência ainda é um desafio. A poesia da matemática que está
naturalmente contida nos meandros de todas as linguagens. Adverte-nos Paz, com
dezenas de exemplos, que a imagem poética, aquela que preserva a pluralidade
das significações, sempre conjuga e
aproxima realidades opostas. A imagem, o diferencial da imagem na extensão de
sua intensidade que dá o contorno maior à qualidade, se traduz em aproximar
realidades separadas e distantes entre si. A submissão da unidade à pluralidade
do real como nos lembra Paz. E mais: de
tal submissão não escapam os conceitos e as tais das leis da ciência. O grande
problema das ciências, do discurso racional, é não perceber que existe uma unidade estranha
no discurso poético, mas que se traduz pela intensidade do sensível, como, por
exemplo, no seguinte fragmento de poema:
Nas centenas de franjas das águas amargas de um rio esquecido em sua curvatura
milhares de cavalos desmemoriados
milhões de crinas azuladas
cintilam?
sob o brilho incomensurável
das galáxias matemáticas. [11]
Pensamos ( e isso não se traduz em
nenhuma novidade) que seria urgente a recuperação de leituras, em todos os
âmbitos, que, finalmente, unissem sensibilidade e razão. Parece-nos que somente
desta forma poderemos sonhar com a fluidez da liberdade. Sob uma equação
esconde-se uma resolução que tenta provar o desconhecido. A poesia das
linguagens bifurcadas permite admirarmos o poder oculto das equações ao
descortinar certas propriedades do universo e da poesia matemática que ressoam
na incapturáveis fendas do real.
[1] Guimarães Rosa, Ficção
Completa, Volume I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 61.
[2] Gaston Bachelard, Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Tradução
de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p.20.
[3] Idem.
[4] Svetlana Aleksiévitch, A Guerra não tem rosto de mulher. Tradução de Cecília Rosas. São
Paulo: Cia das Letras, 2016, p.45.
[5] Ignácio de Loyola
Brandão, Ofício da Palavra. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014, p. 115.
[6] Idem, p. 116.
[7] Ibidem, p. 116.
[8] Op. cit., p. 117.
[9] Gaston Bachelard, Ensaio sobre o conhecimento aproximado, op.
cit., p. 37.
[10] Nas palavras de
Bachelard: "Afirmar o caráter primordial da ordem é reavivar uma velha
discussão. Embora em aritmética os defensores da precedência do número ordinal
sobre o número cardinal tenham apresentado argumentos muito consistentes, é
costume referir a ordem ao número. Por isso na matemática o conceito de medida
é introduzido como conceito básico, e essa ciência é definida como a ciência da
quantidade, discreta ou contínua" idem, p. 34.
[11] Marie-Joulie Chamie, Cavalos
sem memória. Lisboa: Apenas Editora,
2016, p. 81.
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