Espelho
incerto: a palavra poética ou a caligrafia silenciosa
Ana
Maria Haddad Baptista
Mas. De repente a palavra
poética teimosamente se ergue. Caligrafia
Silenciosa, George Popescu, Editora Rocco, graças à tradução de Marco
Lucchesi, vem para o público brasileiro. E pasmem! O tradutor não esconde o
texto original. A obra é bilíngue.
Lucchesi não é daqueles tradutores que gastam quase metade da obra para
justificar seus 'métodos de tradução'. O grande método e mérito de Lucchesi é a
sensibilidade+repertório. A capacidade de transpor seus limites de objetividade
e atingir subjetividades. Temporalidades humanas. Eis o melhor método de
tradução. Isto é admirável. Afinal...conforme se sabe Lucchesi é poeta. Alma de
poeta. Olhar de poeta. E isso muda tudo.
A introdução da obra é
simplesmente fascinante. Nas palavras de Popescu: "A poesia não deve mudar
o mundo nem sequer melhorar a condição humana, tampouco ser uma alternativa,
mas simplesmente uma medicina naturans, uma
saída do círculo impossível do destino. A poesia destrói a ilusória escala de
valores ditados pela moda, inverte o avesso mediante o retorno da tradição,
recusa o perigoso jogo de dados e assume apenas um único risco: um halo por
meio do qual a luz da Palavra é filtrada, quando esta se encarna dentro de um
verso que tangencia o divino."
A poesia, a literatura, jamais
mudaram o mundo. Saramago, em momentos de grande amargura diante das
miserabilidades humanas (lembremos Os Miseráveis de Victor Hugo), declarava que
se ele ou outros escritores jamais tivessem existido o mundo estaria do mesmo
jeito. Cá entre nós: o homem é uma invenção que nunca deu certo. Convenhamos
senhores...(mal posso me lembrar que se os poucos detentores de uma fortuna sem
limites abrissem mão de apenas quatro ou cinco por cento de seus bens, não
haveria, na prática, mais nenhum miserável neste planeta. Que amargor!) E,
aqui, Popescu: "Na densa e silenciosa escuridão como a noite/ de um amor
desperdiçado/ sequer uma palavra/ só o nariz erguido na direção de um céu
invisível/ zigoma apertado nesta imagem/ que cai no teu ventre como um cão/
magoado na soleira de sua última vontade/ de tornar-se homem."
Contudo, a poesia aponta a
probalidade de um outro mundo. Possibilidades de outros caminhos com os quais
podemos, ao menos, sonhar. Delirar! E os delírios poéticos afagam/afogam/
nossas mágoas mais profundas. Novamente Popescu nos responde: "mas não é
assim - respondo-/ com o olhar profundo da memória/ se cavares nessa
arqueologia/ que a transparência também faz tua/ irás descobrir - basta que o
desejes -/ basta que possas ainda querer/ irás redescobrir todas as pobres
existências/ que me serviram de escudo e muro de defesa/ no tempo mágico de uma
só piedade."
Caligrafia Silenciosa integra a coleção Espelho do Mundo. Nas palavras do tradutor : "é uma janela do
presente, aberta para a criação a
poética dos quatro cantos do globo, no diálogo entre os povos e na cultura da
paz. Não o mundo, mas sua representação. Não a imagem, mas o espelho incerto,
no qual brilham a diferença, a beleza do rosto, nas vozes de um mundo novo, em
construção." E estas palavras, belezuramente, traduzem (inclusive) o
melhor da literatura: a luta, desesperadora, de apaziguar as diferenças. A luta
para dar sentidos a existências anônimas. E o sentido e as grandes mudanças
somente podem ser concretizadas pelo pensamento. E o pensamento somente pode
ser traduzido pela linguagem. Ezra Pound, habitualmente, irado, bravo, indignado, inconformado, dizia que quando a humanidade estava quase 'falindo'...a literatura era
convocada. Na derrocada do pensamento o escritor é lembrado. O poeta é
convocado. O único que consegue "ouvir estrelas". E, sobretudo
responder: "Como se dirá borboleta na língua das borboletas?/ Borboleta?
Pura e simplesmente?/ E qual o
significado de borboleta? Na língua delas, é claro./ Não sei. O que sei é que
num mês de junho sem nome, nas colinas próximas de Áquila, no coração da
Itália, uma rosa me disse: 'há quem saiba - disse -, há quem possa conversar
com as borboletas. Com as vivas e com as que/ [ já não existem." O poeta
(em especial, os malditos) conversa com estrelas. E não venha a NASA com seus
tentáculos, destruidores de sonhos, com teorias de 'estrelas mortas', 'abolição
de São Jorge matando o dragão'. Estrelas não morrem. O poeta conversa com seu
brilho que atravessa as temporalidades. A palavra poética traduz, sim, a fala de elefantes, formigas, tartarugas. Ah! E a de dragões!
Obs: Este texto, em grande parte, foi publicado pela revista Filosofia.
Muito lindo!
ResponderExcluirTexto adorável.
Beijos, minha querida.
Maravilhoso!
ResponderExcluirBjs mil :-)
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