Educação, liberdade e autonomia
Ana Maria Haddad Baptista
Entrevista que concedi para a revista da Academia
Brasileira de Letras e publicada, impressa, em novembro de 2017.
Há vinte anos da morte de Paulo Freire
qual o balanço de sua obra nas escolas brasileiras, no entendimento
segundo o qual a educação é essencialmente prática da liberdade?
As escolas brasileiras
estão contextualizadas em um universo mais amplo no cenário mundial. Sabemos,
em especial, se pensarmos nas lúcidas análises de Bauman, Hobsbawm e outros
pensadores, que todas as hierarquias, não somente as escolares, estão completamente fragilizadas e isso, a meu
ver, é muito bom. Implicam numa desestabilização que, por sua vez, indicam
incertezas. Pensando com Edgar Morin e Bachelard: nada pior do que as certezas.
Creio que em relação
às escolas brasileiras Paulo Freire deu e nos dá uma grande contribuição visto
que tem sido reinventado, por exemplo,
no ensino superior e em outras instâncias da Educação. Observo, em minha
prática, uma grande mudança, embora, muitas vezes, quase invisível, em relação
à postura de professores e alunos. Ambos querem mais liberdade para pensar,
ousar e encarar os desafios que a
liberdade nos possibilita. Por um outro lado, sem dúvida, existem as
resistências. Educação como prática da
liberdade exige um despojamento que amedronta e implica, logicamente, em
responsabilidades as quais muita gente não tem coragem de enfrentar. Mas meu
balanço é bastante otimista. Creio muito nas adversidades. Verdadeiros
antídotos contra o estabelecido que desde sempre foi inimigo íntimo da
humanidade em todos os períodos históricos.
Construir escolas para não construir prisões
no futuro, como alguém já disse...
Construir escolas que
efetivamente possibilitem a liberdade de expressão, a liberdade de sermos o que
somos, a participação solidária ou cairíamos em prisões disfarçadas. E elas
existem. Conheço muitas escolas, públicas e privadas, de todos os graus, que
possuem grades, diretores com apitos na boca, uso obrigatório de uniformes, câmeras vigilantes, inclusive, em salas de
aula. Peixes aprisionados em aquários. Aves engaioladas. Proíbem o uso de
celulares e o acesso a bibliotecas, quando elas existem, é cheio de regras e
burocracias. Os 'inspetores de alunos' são vigias uniformizados. Intimidam com o olhar.
Plantas e flores artificiais. Desprovidas de vida. Empoeiradas. Os
espaços de alimentação, 'gelados', verdadeiros reflexos de refeitórios
existentes em presídios. Reina uma atmosfera em que predominam o medo, a
repressão e a subordinação.
Tais escolas, via de
regra, estimulam 'grades curriculares' que inviabilizam projetos que instiguem o
instante, a inventividade e criatividade de professores e alunos. Nessa medida,
somente escolas inovadoras e comprometidas com a real prática e exercício da liberdade
poderiam, sim, subtrair, num futuro muito próximo, a construção de mais
presídios. Caso contrário, se pensarmos
seriamente e, sobretudo, com Paulo Freire e Foucault, as escolas seriam uma
espécie de extensão carcerária. Jaulas que domesticam e, apenas, arruínam o
pensamento e o corpo.
Com taxas de analfabetismo importante e
múltiplos desafios na formação de leitores, como repaginar a leitura do livro
do mundo para jovens adultos?
Esta é uma questão
muito delicada. Complexa. Na minha prática docente tem sido central. Uma das
dimensões de minhas pesquisas. A formação de leitores envolve variáveis
sutilíssimas.
Primeiramente, a
perversa ilusão de que a relação entre leitor e livro seja de causa e efeito.
Em outras palavras...não basta que uma criança cresça junto a bibliotecas para
que se garanta um futuro leitor. Conheço dezenas de pessoas, bastante próximas
a mim, que cresceram entre livros e não gostam de ler. Sabemos que milhões de
pessoas jamais tiveram acesso a eles até a juventude. Hoje são excelentes
leitores. Tornaram-se grandes escritores como é o caso de Saramago.
Uma outra ilusão é
pensar que antigamente se lia mais do que hoje. Objetivamente impossível se
pensarmos com mais cuidado. Bem ou mal o cenário mundial aponta que o nível
universal de alfabetizados aumentou. Apesar de não termos atingido o nível
ideal no Brasil, luta-se muito para isso.
Gosto de lembrar
Sêneca em Da tranquilidade da alma. Denuncia,
há dezenas de séculos, as bibliotecas inertes, apenas enquanto ostentação e
enfeitadas com estátuas. Goethe, em Conversações, nos últimos dez anos de
sua vida, lamenta, com Eckermann, a
ausência de referenciais clássicos entre os jovens. Seféris, nos anos 50 do
século XX, critica a falta de
referenciais de seus contemporâneos.
Uma outro equívoco
grave em relação a leituras é a comparação. Em qualquer situação um perigo. As
pesquisas, em geral, apontam, maldosamente, que os brasileiros leem pouco em
relação a outros países. Provavelmente não leram O inconformista de Luc Ferry e fugiram de análises inteligentes
propostas pelos escritores que acreditam na literatura. Os raros que optaram por
literatura-vida e resistem à sedução do
canto da sereia.
Nessa medida,
questiono enfaticamente: quais foram as metodologias empregadas para se afirmar
que o brasileiro lê pouco? Desde quando a venda de livros pode garantir a real
leitura? Comprar um livro é uma coisa. Ler é outra.
Outro equívoco: há um grande fator, talvez, o
principal, o da qualidade dos livros que são lidos. Um livro de quinhentas
páginas, necessariamente, não é melhor do que um de 40 ou 50. Sabemos que há
livros de algumas dezenas de páginas que nos obrigam a reflexões que perduram
por anos. Até por uma vida inteira. Um poema de algumas páginas pode dizer muito
mais que trezentas! E a releitura? De tempos em tempos, releio, integral ou
parcialmente, as obras pelas quais sou apaixonada. 'Reservas poéticas',
consequentemente, 'reservas de vida'. Se mudamos a cada segundo... cada
releitura é uma nova leitura. Costumo citar a teoria da Relatividade, ou seja,
lembrar que a primeira versão, publicada em 1905, tinha em torno de dez
páginas. Sabe-se do impacto epistemológico que abalou as grandes certezas e continua
desafiando até hoje questões que
envolvem as ciências e a poética.
Em minha prática docente que remonta mais de
quarenta anos, jamais subtraí de meus alunos o encontro com os livros. Sempre
tendo em vista os fatores apontados. Incluo, para completar a resposta, que a
escola pode e deve possibilitar o encontro com a leitura, inclusive, por meio
de aparatos tecnológicos.
No entanto, talvez, um
ponto chave: temos que aumentar as expectativas em relação aos nossos alunos.
Infelizmente a maioria dos professores não confia na capacidade de leitura dos
estudantes e sabem, apenas, lamentar. A maioria de meus alunos, das mais
variadas formações, de graduação ou pós-graduação, sempre acompanharam as
leituras indicadas por mim. Recebo, para minha felicidade, dezenas e dezenas de
retornos de ex-alunos lembrando da importância dos livros que leram comigo e
ressaltando que hoje são leitores.
Finalmente: os acusadores de que seus alunos
nada leem...estão efetivamente lendo alguma coisa? Praticam as necessárias
estratégias que levam à sedução pela leitura? Em que medida são apaixonados por literatura?
Literatura de verdade,
diferentemente de outras linguagens que nos assediam a todo momento, exige de
seus leitores o encontro com o ausente. Portanto: introspecção, coragem,
recolhimento. Paixão. Solidão.
Leitura exige ritmo. Tão caro a Octavio Paz,
Deleuze e pensadores lúcidos. Acompanhar a musicalidade do texto. Em verso ou
prosa. Inclusive, em textos de Filosofia,
História, Física, Matemática e outros. A melodia textual, quando interiorizada,
gradual e profundamente durante a leitura, determinará, mediante necessidades
subjetivas, a velocidade e a verticalidade da leitura. Movimento intransferível.
Incomensurável.
A senhora vem se dedicando nos últimos anos a
uma instigante aproximação dos conceitos de tempo e liberdade na filosofia de
Paulo Freire.
Meu primeiro encontro
com Paulo Freire foi em Educação como
prática da liberdade. Fiquei, à época, fascinada pelas concepções de
temporalidade que ele apontava. Quase quarenta anos depois, por questões
contextuais, retornei a suas obras e tive o mesmo impacto! Decidi ir mais a
fundo. E uma das primeiras reflexões de Freire, na obra citada, é a respeito da
temporalidade humana. Faz uma belíssima comparação entre o homem que, por sua
vez, é um ser intratemporal em relação ao gato, 'afogado', em sua temporalidade
unidimensional. Freire nos fala em duração e em nota de rodapé, quase
invisível, cita Bergson. Nessa perspectiva, sabemos, inclusive pela leitura de
Deleuze, que duração é, sobretudo, liberdade e intuição! Bergson contesta na
virada do século XIX para o XX os
determinismos! Suas concepções de tempo são profundas à medida que possibilitam
mudanças e, claro, a transformação. A partir de Bergson, Deleuze, Ricoeur, Mia
Couto encontrei em Freire o tempo em sua transitividade, mudança, transformação
que estruturam verticalmente a concepção de liberdade proposta pelo nosso
grande educador.
Por outro lado a senhora parte da abordagem de
Paulo Freire, radicada num sensível gradiente poético.
Freire, por incrível
que pareça, é acusado, por alguns, de
usar em suas obras uma linguagem 'muito didática'. Sempre desconfiei de tal
acusação. Ao analisar as categorias de temporalidade, percebi, com alegria, nas
primeiras páginas de A Pedagogia do
Oprimido, a musicalidade e os ritmos que me lembravam o romance-poema Iracema de Alencar. Além de
uma cadência textual similar ao do conto-poema Desenredo de Guimarães, os
silêncios dos oprimidos retratados, em Vidas
Secas, por Graciliano Ramos. Ecos de Morte
e Vida Severina de João Cabral. Fiquei muito intrigada com isso. Os textos
de Freire possuem uma impressionante poeticidade. Orações justapostas.
Predomínio da coordenação. Parti, desta forma, para as entrevistas dadas por
ele e indaguei pessoas que, de fato, o acompanharam pós-exílio. Precisava saber,
a qualquer custo, a respeito de suas leituras. E os meus pressupostos se
confirmaram: Paulo Freire foi um grande leitor de romances, contos e poesias,
além de ensaios voltados para a literatura. Era fascinado por metáforas. Sou
integrante de um projeto da Comunidade Europeia chamado GLOCADEMICS. Juntamente
com a coordenadora, escrevo um livro em que minha parte analisa detalhadamente
a poética e o tempo-memória em Paulo Freire.
O Brasil dispõe de uma reserva invejável de
educadores de envergadura ( Anísio Teixeira ,Francisco Venâncio , Darcy
Ribeiro). E no entanto , o que há de errado com o sistema?
Serei muito breve.
Excesso de memória, tal qual Funnes, o
memorioso de Borges. Excesso de importação e comparação de modelos
educacionais. O Brasil, como todos os países, precisa, de uma vez por todas,
ser compreendido em sua pluralidade.
Valorizar nossa diversidade. Mas, creio eu, acima de tudo, precisamos de
educadores apaixonados por aquilo que fazem. Os professores, afirmava Paulo
Freire, podem muito mais do que imaginam.
Infelizmente... a maioria deste planeta faz o que não gosta. Nessa
medida, aumento de salários, cursos de
capacitação e outras estratégias que visam melhorar nosso sistema caem no
vazio. Portanto, a questão é muito mais aguda do que aparenta.
Qual a agenda mais imediata para a formação de
uma cidadania plena, republicana e solidária para os próximos anos?
Reestruturar, urgentemente, o Sistema Educacional em todos
os graus. Escolas públicas e privadas. Nessa reestruturação ter, em primeiro
plano, a bela imagem de Sartre na leitura de Giacometti: como fazer um homem com pedra sem petrificá-lo? Penso em escolas
impregnadas de movimentos circulares. Espaços, em sua totalidade, cuidados
pelos próprios alunos. Desde a alimentação até a limpeza. Sem hierarquias
rígidas. Escolas envolventes onde provas e chamadas seriam dispensáveis. Que exalem
beleza espacial, poesia, paixões alegres. E o melhor: eu conheço, de perto,
algumas escolas assim. São possíveis. Desnecessário um investimento econômico
muito grande. Ressalto que li, recentemente, um livro cujo autor é professor de
uma das universidades americanas mais prestigiadas e ricas do mundo. Relata o alto grau de infelicidade
e depressão da maioria de seus estudantes.
Ana, sempre querida,
ResponderExcluirSempre que leio me emociono... Você é maravilhosa!
É sempre um prazer ler e ouvir o que a professora Ana Haddad tem a dizer.
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