Educação
O diálogo
interdisciplinar na poética de Marco Lucchesi ou a estética do labirinto/ Parte I
Por Ana Maria Haddad Baptista
Advertências preliminares
Mergulhar, da superfície à
profundidade, no conjunto de obras do poeta, romancista, ensaísta, tradutor,
Marco Lucchesi, é um desafio tão arriscado quanto pular do último degrau da Torre de
Babel. ("Do abismo para o abismo"[1]).
Desabar em um labirinto, que como tal, não possui, matematicamente, nenhuma
invariável. (Regido exclusivamente por variáveis em espaços de indeterminação.)
Desvendar "um homem solitário diante de sua dolorosa solidão" [2]
e temporalidades (meio-dia?).
Lucchesi possui um conjunto extenso de obras. De uma pluralidade
onde o conceito de gênero e interdisciplinaridade, uma vez mais, deveriam ser
repensados seriamente. Ensaios, poemas, romances, traduções e projetos
experimentais (tão bem conceituados por Haroldo de Campos). Labiríntico, o percurso poético de Lucchesi não se perfaz
em linhas de sucessões, mas por cintilações desestabilizadoras. Não há uma
direção a seguir. Estética do labirinto. ("Onde é o começo? É alguém ou
alguma coisa que começa?" [3]).
Desdobra-se sob o fascínio do surpreendente.
E quando o leitor pensa que encontrou a saída é mobilizado por
ressonâncias. Isto é, "o anterior e
posterior, o inacabamento e o incomeço que pertencem por essência à
ressonância" [4].
O leitor, inclusive, há de encarar a sedução proposta por Sartre: "o escritor sabe que
fala a liberdades atoladas, mascaradas, indisponíveis; sua própria liberdade
não é assim tão pura, é preciso que ele a limpe; é também para limpá-la que ele
escreve" [5].
Lucchesi compreende a formulação poética enquanto um pensamento
que se deve dizer. Mas não desenvolver. O inacabado. Nessa perspectiva, para o autor, "poesia
e literatura não suportam a insistência de uma significação ou de um conjunto
de significações já constituídos e organizando-se pela coerência de um discurso
unicamente lógico", como tão bem adverte Blanchot. Um dos maiores exemplos
disso, no conjunto das obras de Lucchesi, é o alto experimentalismo na obra Rudimentos da Língua Laputar: "Trata-se de uma língua perdida, que
procurei, como paciente e desesperado arqueólogo, trazer de volta a nossos
dias, na medida de minhas forças, apesar dos inúmeros entraves criados pela
mistificação do livro Gulliver's Travels [6].
Enfim, a poética de Marco Lucchesi é uma espécie de prova,
quase definitiva, de que literatura, acima de tudo, não se faz apenas com
ideias vagas e pensamentos dispersos. Ou seja, as famosas afirmações, sempre
esgarçadas, de lugar comum, que banalizam o rigor da verdadeira literatura
e subtraem a responsabilidade irrestrita
de quem tomou para si desvendar os grandes mistérios que regem, não somente, o
Universo. Eis uma literatura que dialoga, tranquilamente, com a História,
Filosofia, Matemática, Astronomia, Física e outras áreas do conhecimento.
Subjaz em todo seu diálogo poético interdisciplinar a compreensão de que,
(especialmente com Octavio Paz, Gaston Bachelard, Gilles Deleuze e
Ernesto Sabato), para os poetas existem zonas de realidade não apreensíveis
pela racionalidade. "Prefiro o céu de Blanqui, mil vezes superior ao
esquálido sistema positivo (...) aposto na beleza das janelas diante do
infinito" [7].
Além disso, Lucchesi estabelece (em
muitas obras) o diálogo, essencial e
fundamental, entre Ocidente e Oriente como demonstram sua belas traduções
advindas do romeno, italiano, árabe, persa, somente para ficarmos com alguns exemplos, como
no seguinte fragmento de poema (traduzido por Lucchesi) de Rûmî [8]:
O que fazer, se não me reconheço?
Não sou cristão, judeu ou muçulmano.
Se já não sou do Ocidente ou do Oriente;
não sou das minas, da Terra ou do céu.
Não sou feito de terra, ar ou fogo;
não sou do Empíreo, do Ser ou da Essência.
Nem da China, da Índia, ou Saxônia,
da Bulgária, do Iraque ou Hurassân.
Não sou do paraíso ou deste mundo,
não sou de Adão e Eva, nem do Hades.
O meu lugar é sempre o não lugar,
não sou do corpo, da alma, sou do Amado.
O mundo é apenas Um, venci o Dois.
Sigo a cantar e a buscar sempre o Um.
Observação importante: Este texto foi publicado na Revista (impressa) Filosofia de no. 129 da Editora Escala.
[1] Marco Lucchesi, Teatro
Alquímico, p. 93.
[2] Idem, p.
15.
[3] Maurice Blanchot, Uma voz vinda de outro lugar, p.31.
[4] Jean-Luc Nancy, Demanda,
p. 80.
[5] Que é a
literatura?, p. 60.
[6] Marco Lucchesi, Rudimentos
da Língua Laputar, p. 9.
[7] Marco Lucchesi, O
Dom do Crime, p. 11.
[8] A Flauta e a
Lua, p. 22.
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