sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Educação, liberdade  e autonomia


Ana Maria Haddad Baptista



Entrevista que concedi para a revista da Academia Brasileira de Letras e publicada, impressa,  em novembro de 2017.

Há vinte  anos da morte de Paulo Freire  qual o balanço de sua obra nas escolas brasileiras, no entendimento segundo o qual a educação é essencialmente prática da liberdade?

As escolas brasileiras estão contextualizadas em um universo mais amplo no cenário mundial. Sabemos, em especial, se pensarmos nas lúcidas análises de Bauman, Hobsbawm e outros pensadores, que todas as hierarquias, não somente as escolares,  estão completamente fragilizadas e isso, a meu ver, é muito bom. Implicam numa desestabilização que, por sua vez, indicam incertezas. Pensando com Edgar Morin e Bachelard:  nada pior do que as certezas.
Creio que em relação às escolas brasileiras Paulo Freire deu e nos dá uma grande contribuição visto que  tem sido reinventado, por exemplo, no ensino superior e em outras instâncias da Educação. Observo, em minha prática, uma grande mudança, embora, muitas vezes, quase invisível, em relação à postura de professores e alunos. Ambos querem mais liberdade para pensar, ousar  e encarar os desafios que a liberdade nos possibilita. Por um outro lado, sem dúvida, existem as resistências. Educação como prática da liberdade exige um despojamento que amedronta e implica, logicamente, em responsabilidades as quais muita gente não tem coragem de enfrentar. Mas meu balanço é bastante otimista. Creio muito nas adversidades. Verdadeiros antídotos contra o estabelecido que desde sempre foi inimigo íntimo da humanidade em todos os períodos históricos.

Construir escolas para não construir prisões no futuro, como alguém já disse...

Construir escolas que efetivamente possibilitem a liberdade de expressão, a liberdade de sermos o que somos,  a participação solidária ou  cairíamos em prisões disfarçadas. E elas existem. Conheço muitas escolas, públicas e privadas, de todos os graus, que possuem grades, diretores com apitos na boca, uso obrigatório de uniformes,  câmeras vigilantes, inclusive, em salas de aula. Peixes aprisionados em aquários. Aves engaioladas. Proíbem o uso de celulares e o acesso a bibliotecas, quando elas existem, é cheio de regras e burocracias. Os 'inspetores de alunos' são vigias  uniformizados. Intimidam com o  olhar.  Plantas e flores artificiais. Desprovidas de vida. Empoeiradas. Os espaços de alimentação, 'gelados', verdadeiros reflexos de refeitórios existentes em presídios. Reina uma atmosfera em que predominam o medo, a repressão e a subordinação.
Tais escolas, via de regra, estimulam 'grades curriculares' que inviabilizam projetos que instiguem o instante, a inventividade e criatividade de professores e alunos. Nessa medida, somente escolas inovadoras e comprometidas  com a real prática e exercício da liberdade poderiam, sim, subtrair, num futuro muito próximo, a construção de mais presídios.  Caso contrário, se pensarmos seriamente e, sobretudo, com Paulo Freire e Foucault, as escolas seriam uma espécie de extensão carcerária. Jaulas que domesticam e, apenas, arruínam o pensamento e o corpo.

Com taxas de analfabetismo importante e múltiplos desafios na formação de leitores, como repaginar a leitura do livro do mundo para jovens adultos?


Esta é uma questão muito delicada. Complexa. Na minha prática docente tem sido central. Uma das dimensões de minhas pesquisas. A formação de leitores envolve variáveis sutilíssimas.
Primeiramente, a perversa ilusão de que a relação entre leitor e livro seja de causa e efeito. Em outras palavras...não basta que uma criança cresça junto a bibliotecas para que se garanta um futuro leitor. Conheço dezenas de pessoas, bastante próximas a mim, que cresceram entre livros e não gostam de ler. Sabemos que milhões de pessoas jamais tiveram acesso a eles até a juventude. Hoje são excelentes leitores. Tornaram-se grandes escritores como é o caso de Saramago.
Uma outra ilusão é pensar que antigamente se lia mais do que hoje. Objetivamente impossível se pensarmos com mais cuidado. Bem ou mal o cenário mundial aponta que o nível universal de alfabetizados aumentou. Apesar de não termos atingido o nível ideal no Brasil, luta-se muito para isso.
Gosto de lembrar Sêneca em Da tranquilidade da alma. Denuncia, há dezenas de séculos, as bibliotecas inertes, apenas enquanto ostentação e enfeitadas com estátuas.  Goethe, em Conversações, nos últimos dez anos de sua vida,  lamenta, com Eckermann, a ausência de referenciais clássicos entre os jovens. Seféris, nos anos 50 do século XX,  critica a falta de referenciais de seus contemporâneos.
Uma outro equívoco grave em relação a leituras é a comparação. Em qualquer situação um perigo. As pesquisas, em geral, apontam, maldosamente, que os brasileiros leem pouco em relação a outros países. Provavelmente não leram O inconformista de Luc Ferry e fugiram de análises inteligentes propostas pelos escritores que acreditam na literatura. Os raros que optaram por literatura-vida e  resistem à sedução do canto da sereia.
Nessa medida, questiono enfaticamente: quais foram as metodologias empregadas para se afirmar que o brasileiro lê pouco? Desde quando a venda de livros pode garantir a real leitura? Comprar um livro é uma coisa. Ler é outra.
 Outro equívoco: há um grande fator, talvez, o principal, o da qualidade dos livros que são lidos. Um livro de quinhentas páginas, necessariamente, não é melhor do que um de 40 ou 50. Sabemos que há livros de algumas dezenas de páginas que nos obrigam a reflexões que perduram por anos. Até por uma vida inteira. Um poema de algumas páginas pode dizer muito mais que trezentas! E a releitura? De tempos em tempos, releio, integral ou parcialmente, as obras pelas quais sou apaixonada. 'Reservas poéticas', consequentemente, 'reservas de vida'. Se mudamos a cada segundo... cada releitura é uma nova leitura. Costumo citar a teoria da Relatividade, ou seja, lembrar que a primeira versão, publicada em 1905, tinha em torno de dez páginas. Sabe-se do impacto epistemológico que abalou as grandes certezas e continua desafiando até hoje  questões que envolvem as ciências e a poética.
Em  minha prática docente que remonta mais de quarenta anos, jamais subtraí de meus alunos o encontro com os livros. Sempre tendo em vista os fatores apontados. Incluo, para completar a resposta, que a escola pode e deve possibilitar o encontro com a leitura, inclusive, por meio de aparatos tecnológicos.
No entanto, talvez, um ponto chave: temos que aumentar as expectativas em relação aos nossos alunos. Infelizmente a maioria dos professores não confia na capacidade de leitura dos estudantes e sabem, apenas, lamentar. A maioria de meus alunos, das mais variadas formações, de graduação ou pós-graduação, sempre acompanharam as leituras indicadas por mim. Recebo, para minha felicidade, dezenas e dezenas de retornos de ex-alunos lembrando da importância dos livros que leram comigo e ressaltando que hoje são leitores.
 Finalmente: os acusadores de que seus alunos nada leem...estão efetivamente lendo alguma coisa? Praticam as necessárias estratégias que levam à sedução pela leitura? Em que medida  são apaixonados por literatura?
Literatura de verdade, diferentemente de outras linguagens que nos assediam a todo momento, exige de seus leitores o encontro com o ausente. Portanto: introspecção, coragem, recolhimento. Paixão. Solidão.
 Leitura exige ritmo. Tão caro a Octavio Paz, Deleuze e pensadores lúcidos. Acompanhar a musicalidade do texto. Em verso ou prosa. Inclusive, em textos de  Filosofia, História, Física, Matemática e outros. A melodia textual, quando interiorizada, gradual e profundamente durante a leitura, determinará, mediante necessidades subjetivas, a velocidade e a verticalidade da leitura. Movimento intransferível. Incomensurável.


A senhora vem se dedicando nos últimos anos a uma instigante aproximação dos conceitos de tempo e liberdade na filosofia de Paulo Freire.


Meu primeiro encontro com Paulo Freire foi em Educação como prática da liberdade. Fiquei, à época, fascinada pelas concepções de temporalidade que ele apontava. Quase quarenta anos depois, por questões contextuais, retornei a suas obras e tive o mesmo impacto! Decidi ir mais a fundo. E uma das primeiras reflexões de Freire, na obra citada, é a respeito da temporalidade humana. Faz uma belíssima comparação entre o homem que, por sua vez, é um ser intratemporal em relação ao gato, 'afogado', em sua temporalidade unidimensional. Freire nos fala em duração e em nota de rodapé, quase invisível, cita Bergson. Nessa perspectiva, sabemos, inclusive pela leitura de Deleuze, que duração é, sobretudo, liberdade e intuição! Bergson contesta na virada do século XIX para o XX  os determinismos! Suas concepções de tempo  são profundas à medida que possibilitam mudanças e, claro, a transformação. A partir de Bergson, Deleuze, Ricoeur, Mia Couto encontrei em Freire o tempo em sua transitividade, mudança, transformação que estruturam verticalmente a concepção de liberdade proposta pelo nosso grande educador.


Por outro lado a senhora parte da abordagem de Paulo Freire, radicada num sensível gradiente poético.

Freire, por incrível que pareça, é acusado, por alguns,  de usar em suas obras uma linguagem 'muito didática'. Sempre desconfiei de tal acusação. Ao analisar as categorias de temporalidade, percebi, com alegria, nas primeiras páginas de A Pedagogia do Oprimido, a musicalidade e os ritmos que me lembravam  o romance-poema Iracema  de Alencar. Além de uma cadência textual similar ao do  conto-poema Desenredo de Guimarães,  os silêncios dos oprimidos retratados, em Vidas Secas, por Graciliano Ramos. Ecos de Morte e Vida Severina de João Cabral. Fiquei muito intrigada com isso. Os textos de Freire possuem uma impressionante poeticidade. Orações justapostas. Predomínio da coordenação. Parti, desta forma, para as entrevistas dadas por ele e indaguei pessoas que, de fato, o acompanharam pós-exílio. Precisava saber, a qualquer custo, a respeito de suas leituras. E os meus pressupostos se confirmaram: Paulo Freire foi um grande leitor de romances, contos e poesias, além de ensaios voltados para a literatura. Era fascinado por metáforas. Sou integrante de um projeto da Comunidade Europeia chamado GLOCADEMICS. Juntamente com a coordenadora, escrevo um livro em que minha parte analisa detalhadamente a poética e o tempo-memória em Paulo Freire.

O Brasil dispõe de uma reserva invejável de educadores de envergadura  ( Anísio Teixeira ,Francisco Venâncio , Darcy Ribeiro). E no entanto , o que há de errado com o sistema?

Serei muito breve. Excesso de memória, tal qual Funnes, o memorioso de Borges. Excesso de importação e comparação de modelos educacionais. O Brasil, como todos os países, precisa, de uma vez por todas, ser compreendido  em sua pluralidade. Valorizar nossa diversidade. Mas, creio eu, acima de tudo, precisamos de educadores apaixonados por aquilo que fazem. Os professores, afirmava Paulo Freire, podem muito mais do que imaginam.  Infelizmente... a maioria deste planeta faz o que não gosta. Nessa medida, aumento de  salários, cursos de capacitação e outras estratégias que visam melhorar nosso sistema caem no vazio. Portanto, a questão é muito mais aguda do que aparenta.

Qual a agenda mais imediata para a formação de uma cidadania plena, republicana e solidária para os próximos anos?

Reestruturar, urgentemente, o Sistema Educacional em todos os graus. Escolas públicas e privadas. Nessa reestruturação ter, em primeiro plano, a bela imagem de Sartre na leitura de Giacometti: como fazer um homem com pedra sem petrificá-lo? Penso em escolas impregnadas de movimentos circulares. Espaços, em sua totalidade, cuidados pelos próprios alunos. Desde a alimentação até a limpeza. Sem hierarquias rígidas. Escolas envolventes onde provas e chamadas seriam dispensáveis. Que exalem beleza espacial, poesia, paixões alegres. E o melhor: eu conheço, de perto, algumas escolas assim. São possíveis. Desnecessário um investimento econômico muito grande. Ressalto que li, recentemente, um livro cujo autor é professor de uma das universidades americanas mais prestigiadas e ricas  do mundo. Relata o alto grau de infelicidade e depressão da maioria de seus estudantes.



sábado, 25 de novembro de 2017





Educação: Bataille e a interioridade




Ana Maria Haddad Baptista





         

O que realmente pode se entender por subjetividade? Quais seriam seus limites? Haveria uma profundidade subjetiva, tal como nos sugerem Bergson, Kant e tantos outros filósofos? Em que medida conseguimos, via Deleuze, alcançarmos as profundezas de nossa temporalidade, visto que subjetividade, sob certa perspectiva, não passa de temporalidade interior? Em outras palavras: temporalização humana.  Esta e outras questões são colocadas à tona iluminadas por uma espécie de constelação dos conceitos formulados por Georges Bataille na obra A experiência interior, tradução de Fernando Scheibe, editora Autêntica.
            Bataille em vida foi um escritor pouco conhecido. Quase marginalizado. Seu conjunto de obras, muito variado, felizmente, foge às categorias das grandes e canônicas classificações. E, sabe-se, quando uma obra não se subordina ao lugar comum, a tendência quase que imediata é ficar de lado. Porque desconcerta. Desafia. Instiga. Põe em risco a servidão-escravidão (sempre útil).  Verdade seja dita.
            Nessa medida, a obra em questão nos coloca em xeque. "A experiência interior responde à necessidade em que estou - e a existência humana comigo -de pôr tudo em causa (em questão) sem repouso admissível. Essa necessidade já atuava apesar das crenças religiosas, mas tem consequências muito mais radicais na ausência dessas crenças. As pressuposições dogmáticas deram limites indevidos à experiência: aquele que já sabe não poder ir além de um horizonte conhecido." O fragmento em referência denuncia um dos polos do livro. A moral, o comportamento e outros conceitos colocados à prova da possível submissão ou transgressão. Neste sentido, a leitura do livro conduz, a nós leitores, questionarmos, a fundo, nossos próprios valores. E nos conduz ao confronto. Tarefa dolorosa. Exercício no qual somente a boa literatura poderá fornecer, como , por exemplo, no seguinte fragmento: "A experiência interior, por não poder ter princípio nem um dogma (atitude moral), nem na ciência (o saber não pode ser nem seu fim nem sua origem), nem na busca de estados enriquecedores (atitude estética, experimental), também não pode ter outro anseio nem outro fim que ela não própria. Abrindo-me à experiência interior, postulei seu valor, sua autoridade. Não posso de agora em diante ter outro valor nem outra autoridade. Valor, autoridade implicam o rigor de um método, a existência de uma comunidade". Diante do exposto, minimamente, conseguimos vislumbrar os principais elementos que circunscrevem a tão sonhada liberdade. As indagações mais reveladoras, a nós mesmos, se traduzem, por exemplo, em como escapar da autoridade.
            Em outras palavras, segundo o autor: em que medida ao negarmos qualquer forma de autoridade, não estaríamos, nos próprios, a impor uma outra autoridade? Seria possível sair de tal círculo quase vicioso? A supressão de determinados valores nos carrega a impor outros? Mais adiante, na obra em questão, Bataille provoca o leitor no sentido de que seria necessário apreender certos conceitos por dentro. Em nossa obscura (talvez) interioridade. Como? A prática seria um bom caminho? Não há respostas prontas. Bataille jamais se sujeitaria a tal redução. Os grandes nós existenciais permanecem, sabemos, na disputa das mais variadas trilhas. Por quem morrer? Por quem dobrar os sinos? Por onde caminhar? Será que devemos, ou não, enterrar nossos corações nas curvas de rios?  
            Avançando na leitura deste livro fascinante, em uma outra parte, propõe Bataille: "Existe na base da vida humana um princípio de insuficiência. Isoladamente, cada homem imagina os outros incapazes ou indignos de 'ser'. Uma conversa livre, maledicente, expressa uma certeza da vaidade de seus semelhantes; um falatório aparentemente mesquinho deixa ver uma cega tensão da vida como rumo a um ápice indefinível. A suficiência de cada ser é contestada sem trégua pelos seus próximos. Mesmo um olhar que exprime admiração se agarra a mim como uma dúvida." E novamente somos convocados para um mergulho em nossas convicções, agora, mais abaladas do que nunca. Por que somos tão insuficientes? Os grandes pensadores (artistas, filósofos, poetas, escritores) de alguma maneira expuseram a nossa condição humana, inelutável: solidão. Ler Bataille convence, quase como de um salto, o confronto com o indizível, a incompletude e com aquilo que promete e não cumpre. Nessa medida, temos que atravessar  a solidão. Não existe escapatória. E sedutoramente Bataille nos conduz a questões de autonomia. Diz-nos o quanto ela é incerta, movediça. A condição humana, afirma o autor, nos coloca entre uma certa oposição. Ou seja, entre as incertezas da autonomia rumo à transcendência. Nesse sentido, a vontade humana de autonomia se opõe, num primeiro momento, ao conjunto que nos rodeia, o todo do universo. Mas a autonomia ao se opor corre o risco de definhar. O perigo da renúncia. No entanto, tal estado é passageiro. Por algum tempo. Contudo, o equilíbrio, numa espécie de movimento, se recupera, se faz e se dobra ao conjunto. Ao todo. Há, continua Bataille, o fator angústia. A angústia da submissão do mundo, digamos, aos nossos desejos e vontades. Vontade de ser nós mesmos e colocarmos em ação nossas ações menos transparentes.
            Finalizando...Bataille possui um estilo. Inconfundível. Qualidade excepcional daqueles que, realmente, merecem ser denominados verdadeiros ensaístas. Possuem uma estética que vai além do banal e do comum. Ler Bataille  é como enveredar nas malhas de uma teia finíssima de erudição e, sobretudo, humanidade. Uma literatura que merece ser denominada como tal!

Obs: Este texto foi publicado pela Revista Filosofia (impressa) de no. 132.
           

            

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Educação

A poética interdisciplinar de Marco Lucchesi ou a estética do labirinto/ Parte II

Ana Maria Haddad Baptista





Da solidão da obra
           
            O conceito de solidão pode ser apreendido sob diversos aspectos. Fala-se muito dela. Aquela que designa um estado individual e do qual não podemos escapar. Há a solidão histórica e tantas outras. O conjunto literário de Marco Lucchesi é marcado pela solidão da obra. Aquela solidão tão bem definida por Blanchot [1]. Em que consiste a solidão da obra? O que Blanchot designa por solidão essencial. O escritor diante de um trabalho que jamais tem um fim. Estética do labirinto.  O escritor que tem diante de si [2]:

A cada folha
em branco                   a cada
verso
                        inexistente
a baba do dragão
                e o fero basilisco

            A solidão essencial... "irreparável solidão?"[3] . A consciência do escritor de que sua obra é sempre inacabada. Rumo ao infinito. O vazio da folha em branco. A solidão de Lucchesi, ainda na esteira de Blanchot, de que essa condição o coloca em risco, ou seja, o que pertence, de fato, à obra, está, na verdade, ao que está sempre ao que vem antes dela. Ouçamos o ressoar da poesia: [4]:

As páginas brancas
do livro
do mundo e o sonho
verde
do alquimista

            Lembremos Foucault: "Neste momento em que escrevo e em que me falta tão cruelmente a certeza de poder fazer um livro (...) escrevo hoje e aqui a partir de sua inexistência e do vazio que eles deixaram em mim" [5]. Da solidão essencial da obra e do escritor advém a universalidade da voz literária. A universalidade no sentido de um eu que deve, obrigatoriamente, reconhecer-se fora de si mesmo. A solidão total do escritor ao se deparar com o abismo de sair de si sem qualquer âncora. Nas palavras do poeta [6]:

Cai a tarde sobre o campo.
Pelos tristes caminhos, um ser,
imoto e solitário,
provando uma estranha
soledade, uma privação de tudo,
um vasto abandono,
um leve
crepuscular desespero,
contempla o ouro gasto do Sol
e as
imensidões
da
Terra.

Das belezas
do acaso
se apodera,
de sonho
e solidão,
enquanto
haure
o singular
mistério
da distância,
e seu aroma
de tristeza
e abandono,
de golfos
extremados,
enseadas
convulsas
ilhas
torturadas.

            O maior desafio para um escritor de verdade é o não ser ele mesmo. Nada pior do que o 'eu'. Muitos pensadores já disseram isso. Enganam-se aqueles que acham que escrever é 'contar a historieta de sua própria vida'. Escrever, acima de tudo, é buscar uma universalidade. E para tal empreendimento somente uma voz universal. A voz que fala por uma mulher, sem ser mulher. A voz que fala por um gato, sem ser o gato. A voz que fala por um cavalo, sem ser o cavalo. Observe-se no poema em questão de Lucchesi, o eco universal. O abandono. Na verdade, talvez, a melhor síntese, neste caso, seria a voz da solidão. Em outras palavras: a solidão falando por ela mesma. Impessoal. A voz do universal como também é o caso de Lucchesi falando pelo deserto, ou o devir-deserto "(...) mas uma noite, Leila, flutuava em teu rosto, banhado de sombras, e se revelava num claro fulgor, longe dos males do exílio, das mortes que se abatem, nas folhas levadas pelo vento, tristes desarmonias, desferidas pelo fundo das coisas..."[7]. E para tanto é preciso desviar-se de si. Deixar de ser a si mesmo. A renúncia absoluta.
            A solidão essencial, a da obra, a do escritor, proposta por Blanchot, não passa despercebida à sensibilidade de Ana Miranda num mini conto dedicado ao poeta: "(...) nesse mesmo quase silêncio escorrega a memória de ele [Marco Lucchesi] ontem a tocar piano, debruçado, intenso, sem olhar nenhuma partitura, sem olhar as teclas, olhando para dentro de si,  de suas recordações, de seus silêncios. (...) mas ele não me vê, nem poderia me ver, sou ausência, ele toca enfeitiçado e surdo as teclas de seu piano, compondo poemas em formas de sons, [e a arquitetura do labirinto oscila] às vezes entusiasmados, às vezes distraídos, sob a influência de suas galáxias longínquas, seus mares azuis inacabados, suas águas claras, seus deuses sem definição, a beijar pedras, palavras sussurradas e rebanhos, tornando tudo o mesmo horizonte" [8].
            Qual o horizonte do poeta? Em suas palavras: "Um quadro absolutamente feroz, entre diferença e repetição, em que homens e planetas quimicamente se desdobram como num sonho vasto. Presente que é irmão do abismo, com universos inacabados, preenchendo a solidão, como se lhe diminuísse o horror ao vazio, num agora crescente vertiginoso" [9]. A obra ao infinito, ainda com Blanchot, porque um escritor, de verdade, jamais termina uma obra. Estética do labirinto. (Os ecos, furiosos, de Nietzche: "Meus impulsos e minhas intenções estão confusos (...) e se tornam labirínticos: de modo que não sei como deixá-los"[10]). Seu projeto é sempre inacabado. Uma obra aponta para aquela que haverá de surgir. E com isso, novamente, a solidão do poeta, estritamente vinculada à solidão da obra.
            Em outras palavras, a obra ao infinito, no conjunto de Lucchesi, é notadamente marcada pela busca. Estética do labirinto. ("o rastro de uma busca interminada, sempre a ponto de se completar e que jamais se completa"[11]).
              Clio é, fundamentalmente, a busca de uma memória histórica. Obra composta por três partes cujo fio condutor que as une está, inclusive, em seu projeto estético. Mas, sobretudo, a consciência poética, tão bem definida por Octavio Paz, de que a poesia não está a serviço da História, como no poema Ofício :

a superfície em que sou imerso
                                         esta
                          e não    outra
                minha profundidade
           
            O diálogo de Lucchesi com a História se estende, também, aos seus romances. Na obra O Dom do Crime o narrador coloca as vozes de Machado de Assis numa sinfonia com a História do Brasil. Disso resulta um diálogo com a literatura machadiana que recupera, vivamente, uma tradição histórica e  literária. Um eu que se distancia dos fatos que irá tratar nos romances e, ao mesmo tempo, resgata o clima do passado. Quais os contornos que estruturam tal diálogo com a História e com a Literatura? Neste caso,  uma ironia marcada pelo requinte e erudição daqueles que conhecem profundamente a história do Brasil e os finos meandros da literatura machadiana. Daí surge um diálogo, (urgentíssimo para o nosso país de hoje), entre os limites do 'real' e do 'ficcional'.  A leitura de O Dom do Crime, entre tantas outras coisas, provoca a busca de nossas tradições. Convoca a reflexão. E, acima de tudo, deixa claro que: "A História é o centro de um mundo épico. O singular e o irrepetível morrem no oceano do tempo. Apenas a ficção há de ser o anjo da guarda das formas individuais, a memória de uma paisagem agostiniana"[12] . Eis a síntese ficção-verdade-realidade que orquestra a obra. Obriga-nos a uma profunda revisão da história. O legado de uma tradição que  deve ser repensado. Alterado? Atualizado?  
            Tal diálogo se estende ao outro romance do autor, ou seja, O Bibliotecário do Imperador. Neste romance o que impera é o longo diálogo com os livros. Com as bibliotecas. Acima de tudo a questão da verdade, em especial, as brumas pelas quais são regidas uma autobiografia, verdade e ficção. Um exercício de reflexão  labiríntico.

O diálogo com as ciências

            Os ensaios, os poemas e os romances de Lucchesi estão em constante diálogo com as ciências. No entanto, chama a atenção, nesta perspectiva, a obra Hinos Matemáticos. Como o próprio título indica, neste livro, literatura, filosofia e matemática  estão mais interligados, como no poema Eros:

Serpeiam por difuso sortilégio
dois amorosos números solares
de mãos dadas: o 220
com o 284
Bastou que se encontrassem e disseram
os versos que de pronto os definia:
eu morro em mim para nascer em ti

            Esta poema não possui uma  linguagem que faz empréstimos, sem garantias,  (como geralmente é o lugar comum), de termos matemáticos. Temos aqui, acima de qualquer coisa, conceitos matemáticos que se desprendem num enlace amoroso. O tom erótico (levíssimo). A poesia da matemática. "Números amigos. Números especulares. A soma de seus respectivos divisores resulta no outro" [13].  Este diálogo com a matemática nos leva a pensar o que, de fato, exige o olhar interdisciplinar, ou seja, não basta jogar ao acaso números, dados e símbolos. Nas palavras de Ubiratan D'Ambrosio: "A dúvida final de Sócrates, sobre como se reconhece um amigo, no Lísis de Platão, recebe de Marco Lucchesi uma emocionante resposta, quando diz 'eu morro em mim para nascer em ti', no poema Eros, ao refletir sobre números amigos como introduzidos pelo Pitágoras místico"[14] . Ouçamos Lucchesi: "A ideia da beleza na matemática, que se encontra em diversos autores, como Hardy ou Poincaré, causou em mim grande impacto. Como se me deparasse com uma verdade perdida, um substrato arqueológico que me parecia  estranhamente familiar e decisivo. Apreciava na geometria do caos o conceito de escala ou de autossemelhança, esse fio de Ariadne, diante de cujos labirintos ["Vir para onde? Vir, ainda que para lugar nenhum, apenas lá onde - nas fendas do morrer - a luz incessante (que não ilumina) fascina". [15]] fractais eu descobria saídas e passagens" [16]. Estética do Labirinto.

De memórias e diários

            Muitos escritores mantiveram diários e memórias ao longo de seus percursos literários. Gide, Seféris e tantos outros. No entanto, no caso dos grandes escritores, o diário não é um registro de lamúrias e projeções de um eu. Eis aqui a sutilíssima advertência de Blanchot [17]: há uma necessidade vital do escritor lembrar-se de si mesmo! Precisa saber quem é quando não escreve. Afinal, possui um cotidiano. Possui uma vida! Em Saudades do Paraíso, por exemplo,  os postulados de Blanchot ficam muito claros na literatura de Lucchesi: "O deserto é um espelho e o Marrocos acenava como a promessa de uma salvação incondicional de mim mesmo. Farto de meus pensamentos, abespinhado com os meus dias, anotei antes de viajar: 'Ainda não desapareci totalmente de mim. Persisto. Perlustro. Persigo minha solidão e suporto minha escassa permanência'. Subjugavam-me o peso das leituras e o fantasma da morte" [18]. Claramente o escritor precisava lembrar de que tem uma identidade que não a mesma daquele que escreveu!  E também: "Sou uma nuvem de livros e ideias fervilhantes. Inúteis delimitações da decadência, em Gibson, e da teologia, em Al-Ghazali. Horizonte de nuvens carregadas. Sentimentos opacos. Este sou eu." [19]. Estética do labirinto. "Há uma imagem de Bergson, que representa a vida como o fio da meada ["...o delicado fio de Ariadne..." [20] ] que também pode retornar a si mesma, valorizando talvez algo que possuíamos e de que não tínhamos consciência" [21]. Mas "filosofar não vai sem elã, muito menos sem um elã violento, que lança adiante e que arranca também: que arranca ao sentido depositado, sedimentado, meio decomposto e que lança a um sentido possível, sobretudo não dado, não disponível, que é preciso espreitar, surpreender em sua vinda imprevisível e jamais simples, jamais unívoca" [22].

Advertências provisórias (quase)

            O diálogo interdisciplinar  poético de Marco Lucchesi é estruturado pela estética do labirinto que, por sua vez, é regida pela erudição, diálogo permanente com o exercício do pensamento. Com o inacabado:  sensível e inteligível apontam para o infinito. Instante-síncope?  Pensando com certos pressupostos de Deleuze, a respeito de literatura, e diante do que foi exposto neste ensaio, facilmente se distingue aqueles que possuem 'intenções literárias' e os raros que podem, realmente, dizer-se escritores. Atente-se para a importante advertência de Ettore Finazzi-Agrò : "O que espanta, em Marco, não é apenas a amplitude de suas atividades culturais (tradutor, crítico, editor de revista, estudioso de línguas), mas sim a sua capacidade de transitar ["poeta que sempre viajou através dos séculos e das estrelas" [23]] por essas atividades mantendo uma coerência de fundo, um rigor e uma capacidade de se exprimir na pluralidade que tem poucas comparações, que eu saiba, no mundo" [24].
            Para os poetas autênticos, cujas liberdades são intransferíveis, prêmios são secundários. Entretanto, sem hesitações, pode-se também advertir que Marco Lucchesi  é um dos únicos (do mundo) e deste país, (labiríntico, plural, cintilante, oscilante, entremeado [pelas mais diversas solidões]), digno (mesmo se considerarmos as amarguras relativas a prêmios de Thomas Bernhard) de receber o Nobel de Literatura.
            O fio de Ariadne da estética do labirinto de Marco Lucchesi é tecido pelo sublime. Eterno fascínio. Nas palavras de Deleuze: "Dioniso é a afirmação do Ser, mas Ariadne é a afirmação da afirmação, a segunda afirmação ou o devir-ativo" [25].  A estética do labirinto da literatura de Marco Lucchesi  balança (linhas sísmicas, como se nada/ mais pudesse/ permanecer de pé [26] ) a arquitetura do próprio labirinto visto que a torna sonora e musical. Uma música que faz desmoronar os territórios e tremer a arquitetura (flutua /em mil pedaços [27]) do labirinto [28]. Sob tal ótica nossas  convicções abrem-se e dividem-se em intervalos. O fio de Ariadne, neste caso, lança, relança, dança e define uma flutuação... "o momento musical : a passagem do tempo para fora do tempo, a composição dos presentes passados e por vir num presente que não é o da presença dada, mas o do lembrete e da espera, o presente composto de uma tensão em direção ao retorno infinito de uma presença nunca dada, sempre essencialmente - eternamente -escapada" [29].  Convolados, somos convidados aos silêncios e conceitos que se dissolvem ao ressoar da ramagem que recorda a melodia dos tempos  [30].
               
  Observações:         

1. Marco Lucchesi ocupa a cadeira de no. 15 da Academia Brasileira de Letras.Poeta, romancista, ensaísta, tradutor, editor e conferencista brasileiro.  Professor titular de Literatura Comparada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seus livros já  foram traduzidos para o árabe, romeno, italiano, inglês, francês, alemão, espanhol, persa, russo, turco, polonês, hindi, sueco, húngaro, urdu, bangla e latim.

2. Texto publicado na Revista Filosofia,  versão impressa, Editora Escala, em agosto de 2017.

Referências Bibliográficas

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__________________. Uma voz vinda de outro lugar. Tradução de Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BLANQUI, Louis-Auguste. A eternidade pelos astros. Organização de Marco Lucchesi. Tradução de Luciana Persice. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
LUCCHESI, Marco. A Flauta e a Lua: poemas de Rûmî. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2016.
_______________. Poemas Reunidos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
_______________. Os olhos do deserto. Rio de Janeiro: Record, 2000.
_______________. Saudades do Paraíso. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1997.
_______________. Clio. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.
_______________. A memória de Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
_______________. Viagem a Florença: cartas de Nise da Silveira a Marco Lucchesi/organização de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
_______________. O bibliotecário do Imperador. São Paulo: Globo, 2013.
_______________. Carteiro Imaterial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.
_______________. Hinos Matemáticos. Rio de Janeiro: Dragão, 2015.
_______________. Rudimentos da Língua Laputar. Rio de Janeiro: Dragão, 2015.
_______________. O Dom do Crime. Rio de Janeiro: Record, 2010.
MIRANDA, Ana. In: Lembrança de uma manhã. Revista Brasileira 88: Rio de Janeiro, 2016.
NANCY, Jean-Luc. Demanda: Literatura e Filosofia. Tradução de João Camillo Penna et.ali. Florianópolis: Ed. UFSC/Argos, 2016.
NIETZSCHE, Friedrich. Volumen IV. Tradução de Marco Parmeggiani. Madri: Editorial Trotta, 2010.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. Tradução de Carlos Felipe Moisés. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.







[1] L' espace littéraire, p. 17.
[2] Marco Lucchesi, Sphera, p. 37.
[3] Marco Lucchesi, Poemas Reunidos, p. 51.
[4] Idem, p. 53.
[5] Michel Foucault, p. 43.
[6] Marco Lucchesi, Poemas Reunidos, pp. 112-113.
[7] Marco Lucchesi, Os olhos do deserto, p.29.
[8] Revista Brasileira, p. 209.
[9] Marco Lucchesi, A Eternidade pelos Astros, p. 9.
[10] Correspondencia, Volumen IV, p. 403.
[11] Ettore Finazzi-Agrò, A memória de Ulisses, p. 12.
[12] Marco Lucchesi, O Dom do Crime, p.38.
[13] Marco Lucchesi, Hinos Matemáticos, p. 38.
[14] Idem, p. 10.
[15] Maurice Blanchot, Uma voz vinda de outro lugar, p. 101.
[16] Idem, p. 51.
[17] L'espace littéraire, p.24.
[18] Saudades do Paraíso, p. 69.
[19] Marco Lucchesi, Os olhos do deserto, p. 81.
[20] Marco Lucchesi, Carteiro Imaterial, p. 97.
[21] Marco Lucchesi, A Memória de Ulisses, p. 201.
[22] Jean-Luc Nancy, Demanda, p. 36.
[23] Nise da Silveira, Viagem a Florença, p. 63.
[24] Memória de Ulisses, p. 10.
[25] Crítica e Clínica, p. 118.
[26] Marco Lucchesi, Poemas Reunidos, p. 150.
[27] Idem, p. 45.
[28] 'Inspiro-me' nas cintilações de Deleuze em sua leitura poética de Nietzche-Wagner.
[29] Jean-Luc Nancy, Demanda, p. 80.
[30] Marco Lucchesi, Poemas Reunidos, p. 196.