Educação e Memórias na obra
de Edward Said
Ana Maria Haddad Baptista
De acordo com as inúmeras
fontes que temos, ora da Psicologia, ora da Biologia e outras áreas do saber,
nosso passado, em particular, o individual, é lido, sentido e vivido sob a
ótica do presente. Uma espécie de condenação humana. Diga-se que tal condenação
é necessária. Que triste se jamais deixássemos de esquecer algumas coisas.
Sabe-se que a memória, para nossa (in)felicidade, filtra, hierarquiza e
seleciona o que mais temos de significativo para ser interpretado no presente. Seres
intratemporais... fluímos. O tempo passa. Cultiva temporalidades indiferentes. Nós mudamos a cada milésimo de segundo. Nada
se fixa. Eternizamos, subjetivamente, alguns momentos.
Fora do Lugar: memórias de
Edward Said, tradução de José Geraldo Couto, Cia das Letras, é um verdadeiro
exercício de memória do autor. Uma obra fascinante. Autobiográfica. Edward Said
nasceu em Jerusalém (1935) e, infelizmente, morreu em 2003. Considerado um dos maiores intelectuais de todos os
tempos. Teve uma formação humana muito sólida aliada a uma educação familiar
bastante rígida. Viveu boa parte de sua vida no Cairo e em alguns países árabes. Cursou universidades
americanas. A de Princeton e Harvard.
Nessa medida, possui, com muita segurança, bastante ponderação cultural, além
de uma incrível sensibilidade ao analisar questões relacionadas entre o Oriente
e o Ocidente. Aliás, tais ponderações foram as principais causas que deixaram
Said tão reconhecido em todo o mundo. Pode-se afirmar que Said, por sua extrema
sensibilidade e profundo respeito pelo ser humano, consegue equilibrar suas
tendencialidades, das quais ninguém, praticamente, consegue escapar, ora por
força de uma formação, ora por força de uma paixão quando reflete as mais
diversas questões a respeito de cultura, religião e política.
Nesta obra autobiográfica ele
declara: “este livro foi escrito em grande parte durante períodos de doença ou
tratamento, às vezes em casa, em Nova York, às vezes desfrutando da
hospitalidade de amigos ou instituições na França e no Egito. Comecei a
trabalhar em Fora do lugar em maio de 1994, enquanto me restabelecia de
três sessões iniciais de quimioterapia para tratamento de leucemia.” Said lutou
contra a doença por mais ou menos dez
anos. Até ser definitivamente vencido por ela. No entanto jamais parou de
escrever. A doença foi determinante na
firme decisão de escrever um livro de
memórias, cuja perspectiva predominantemente subjetiva o autor não nega.
A obra não segue uma cronologia linear (e sem graça)
da infância até o momento em que ele relata suas memórias, ou seja, os momentos
de reflexão em que o autor recupera fatos de sua vida. Há um longo exercício de
vai e vem que é um dos pontos altos deste livro porque causa uma tensão textual
vigorosa que prende o leitor. Quer se saber mais e mais do autor. E, nessa
medida, somos, agradavelmente, transportados para o Cairo do início do século
XX. Um Egito completamente distinto do que se apresenta hoje, entre outros
motivos, porque a Palestina ainda não tinha se dividido. Somos transportados
para Beirute e para as montanhas do Líbano. Os veraneios da família do autor,
via de regra, eram no Líbano (sua família era extremamente abastada). As
impressões de infância do autor são reportadas, em grande grau, para a escola e
para seus pais.
Said estudou em diversas
instituições. Ora de composição inglesa, ora de composição americana. E com
isso traça, involuntariamente, uma verdadeira história da educação. A atitude
dos professores. O regime escolar. E há coisas de causar espanto a educadores, estudantes
e pesquisadores: mesmo em se tratando de escolas pagas e consideradas de alto
nível cultural, os regimes escolares como um todo, são profundamente injustos,
desinteressantes e cheios de “castigos”. Por conta dos relatos do autor podemos
tecer comparações com a situação atual das escolas e vemos, em grande medida, o
quanto avançamos em relação às discriminações (por mais que elas existam). Nas
palavras de Said: “Ficávamos perfilados ali supostamente [na escola] para ser
contados e acolhidos ou dispensados. (...)Isso parecia um educado ritual para
camuflar o sacrifício de ficar em fila, onde tinha lugar todo tipo de coisas
desagradáveis. Como éramos proibidos de abrir a boca na classe, exceto para
responder as perguntas de professores, a fila era a um só tempo um bazar, uma
casa de leilão e um tribunal, onde eram trocadas as mais extravagantes ofertas
e promessas, e onde as crianças menores eram intimidadas verbalmente pelos
meninos mais velhos, que as ameaçavam com os mais medonhos castigos.”
Após o ensino médio Said foi
para a Universidade de Princeton e, posteriormente, para a Harvard. Somente
depois de ter sofrido todas as formas possíveis de incompreensões por parte de
sua família, de seus professores e diretores. Por quê? Porque seu comportamento,
em geral, não trilhava pelo que se esperava de um bom menino. Dócil, obediente
e que concordasse com tudo. Said sempre se mostrou rebelde e mais centrado
naquilo que lhe interessava. Somente começou a se destacar no plano intelectual
durante o ensino médio.
Finalmente, a leitura das
memórias de Said nos proporciona uma das maiores lições para pais, professores,
estudantes e professores, ou seja, o quanto as escolas sempre foram cegas a
alunos contrários aos cânones. E vale ressaltar, uma vez mais: o quanto o
sistema escolar costuma jogar fora grandes talentos e insubmissos. Said é mais
um exemplo daqueles que sofridamente conseguiu escapar do sistema e mostrar que
a autenticidade e convicção devem ser
perseguidas a qualquer preço. Não há grandes desafios e quebra do estabelecido
sem grandes penalidades para a alma. Eternamente a solidão perseguirá convictos
por um mundo mais humanizado. Digno de ser comtemplado.
Desta maneira, eis aqui mais
uma sugestão de leitura, em especial, para meus alunos e ex-alunos. Felizmente,
de tempos em tempos, tenho retornos maravilhosos de ex-alunos, que graças a
algumas indicações de leituras de meus cursos, até hoje conseguem admirar e
desfrutar daquilo que somente a literatura pode nos trazer: insubmissão,
admiração, indignação. Três paixões que juntas formam um poderoso antídoto
contra o tédio, a injustiça, a melancolia e todas as espécies de paixões
tristes tão proliferadas em nosso cotidiano.
Obs: Este texto, em grande parte, foi publicado pela
Revista Filosofia da editora Escala.
Obrigado Professora, vou ler com muito carinho e cuidado!!
ResponderExcluirProfessora, acabei de ler uma matéria sua na Revista Filosofia sobre o livro "Poesias Visuais" do Miguel Frias e estou encantada com suas palavras. Venho então até aqui, humildemente, dizer que acharia incrível se a senhora fizesse, também, uma resenha sobre o livro "As Flores do Mal" de Charles Baudelaire. Acredito que seria fantástico.
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