domingo, 13 de setembro de 2015





Néctar de Letras: Enterrem meu coração na curva dos mares de memórias

Ana Maria Haddad Baptista


“Μην ξεχνάτε ότι η στιγμή της δημιουργίας συνδέεται σε κάθε στιγμή της ζωής.”
“Não esqueça que o instante da criação está ligado a todo o instante da vida.”
Giorgos Seféris

“Η ανθρώπινη ζωή γίνεται του χρόνου: η ώρα της σποράς, την πάροδο του χρόνου, την ώρα της θλίψης, την ώρα της χαράς, μια φορά για την αγάπη, την ώρα της μοναξιάς.”
“A vida humana é feita de tempos: tempo de semear, tempo de colher, tempo de tristeza, tempo de alegria, tempo de amor, tempo de solidão.”
Giorgos Seféris

A vida humana é feita de humilhações que confrontam os verdadeiros valores. Os refugiados colocam em pauta, nunca escala global, quem é quem. Pode-se mais do que em qualquer outro momento da história da humanidade, observar a arrogância da Europa, o cinismo americano e  a recepção aberta do Brasil (apesar de tudo) diante de um quadro monstruoso que arrasa memórias coletivas e individuais.
Giorgos  Seféris é um escritor grego do século XX. Nasceu em Esmirna, Turquia, em 1900, que na época ainda era uma cidade grega da Ásia Menor. Morreu em Atenas em 1971.  Primeiro escritor grego a conseguir um Nobel em Literatura no ano de 1963.  Pouco conhecido e lido nos dias atuais, mesmo na Grécia.
Sua obra, tecida de forma detalhada e bastante reflexiva,  compõe-se de poesia e prosa.  Traduzida para muitos idiomas, contudo,  atualmente, é quase que uma façanha encontrar a obra do autor, em especial, sua obra em prosa que consiste em diários, ensaios e cartas. Todas elas com um altíssimo grau de poeticidade. A prosa  de Seféris é uma contínua reflexão a respeito do papel da literatura e do fazer literário. Sua relação, no momento enquanto escreve, com o passado é a de uma permanente continuidade  com os valores culturais, gerais do passado helênico. O conceito de temporalidade no conjunto de obras de Seféris é o de indivisibilidade. Tempos que se misturam. Alternam-se sem uma ordem previamente estabelecida. Ritmos de tempo-memória sobrepostos.
De um modo geral, não é incomum na virada do final do século XIX para o século XX, encontrarmos uma grande grau de memorialismo nas mais variadas literaturas mundiais. As evidências históricas levam a crer que devido à queda de grandes impérios, por exemplo o Império Otomano, assim como a dissolução de outros  imperialismos, assim como  a independência de muitos países, levaram, em parte,  os escritores a uma  valorização de elementos nacionais.
O que se pode entender por um escritor memorialista? Na maioria das vezes um escritor memorialista está preocupado  com suas próprias memórias. Conforme se sabe, não é incomum os grandes relatos de uma vida inteira, ou de partes de uma vida centradas em suas próprias experiências, inclusive, muitas vezes, beirando um certo grau de narcisismo.
Num contexto  onde o modelo de subjetividade ganha novos contornos e um dos traços de tais contornos é a valorização extrema e quase inútil sobre os próprios  caminhos, sob nossa perspectiva, Seféris, é bastante singular. O que menos importa é o seu próprio eu. Por intermédio de suas memórias o escritor grego procura, sempre, ressaltar os outros, especialmente os que ficaram à margem. Nessa medida, recupera o nobre papel dos poetas da Antiguidade, ou seja, aqueles que guiados pelas Musas vão em busca do passado coletivo de seu povo, os eternos mestres da verdade.
Seféris é autor de um projeto poético consciente da grande importância do papel do escritor.  Os pressupostos epistemológicos de sua literatura evidenciam sua postura. O escritor grego, via de regra,  recupera imagens mitológicas, grandes escritores do passado grego e de sua geração.
O papel do poeta não é equivalente ao do historiador. Contudo,  é inegável que o escritor rivaliza-se com o historiador, entretanto, com muitas vantagens. O poeta não possui nenhum compromisso aparente para com a verdade. Seu compromisso maior  é com a própria vida, com a dignidade humana.
 O historiador, por mais que seu discurso  contenha  elementos de ficção, está atrelado  ao peso dos fatos e dos documentos.  Nunca vai possuir a leveza que a liberdade poética outorga ao poeta. Entre o historiador e o leitor existe um acordo tácito, implícito do compromisso em resgatar uma memória “onde realmente as coisas ocorreram”.
Seféris é consciente de que não existe uma coincidência do tempo em que escreve com os fatos que narra, mas por isso mesmo evidencia aqueles fatos e pessoas que podem ser importantes para a recuperação do passado e analisar o presente sem  inúteis nostalgias.


Mar, mares, memórias

A obra de Seféris  insiste num tema muito caro, de um modo geral, para a  maioria dos gregos: o mar.  As referências ao mar são contínuas e insistentes na prosa e na poesia do escritor grego e alude a várias coisas. O poema [1]  a seguir é um dos inúmeros exemplos:

 À maneira de G.S.

Para onde quer que eu viaje, a Grécia me dói.

No Pélion em meio às castanheiras a camisa do
      Centauro
deslizava entre as folhas para vir enrolar-se no meu corpo
enquanto eu galgava a encosta e o mar me
        acompanhava
até chegarmos às águas da montanha.
em Santorini tocando eu ilhas que afundavam
escutando uma flauta soar algures entre as pedras-pomes
a mão pregou-me à amurada do navio
uma seta de súbito lançada
dos confins da esvanecida juventude.
Em Micenas ergui as grandes pedras e os tesouros dos
      Átridas
e junto deles me deitei no hotel “A Bela Helena de
     Menelau”;
só desapareceram na alva ao canto da Cassandra
com um galo a lhe pender do colo negro.
Em Sptese em Míconos em Poros
enfadou-me ouvir as barcarolas.

Que pretendem esses todos quando dizem
que podem ser achados em Atenas ou no Pireu?
Um vem de Salamina e quer saber de um outro se ele
       “vem da Omônia”
“Não, venho do Sintagma” responde ancho de si
“Encontrei o Yánnis convidou-me a um sorvete.”
No entrementes é a Grécia que viaja
não sabemos de nada não sabemos quem somos nós
       desembarcados
ignoramos a amargura do porto quando os barcos todos
      já partiram
escarnecemos aqueles que ainda a sentem.

Estranha gente que pretende achar-se na Ática e não está
      em parte alguma;
compram confeitos de amêndoas quando vão casar
usam  “loção para o cabelo” fotografam-se
o homem que hoje vi sentado em frente de um telão com
       flores e pombinhos 
permitia que a velha mão do fotógrafo alisasse as rugas
que lhe deixaram na pele do rosto
os galos do céu.

No entrementes é a Grécia que viaja ela toda que viaja
e se “vemos o mar Egeu a florir de cadáveres”
são daqueles que quiseram tomar o grande  barco
      nadando-lhe ao encontro
daqueles que cansaram de esperar navios que já não
partem o  “Samotrácia” o “Elsie” o “Ambracia”.
Apitam os navios agora que anoitece no Pireu
todos apitam todos mas não se move cabestrante
algum corrente alguma que úmida cintile à luz agoni-
zante
       o capitão está ali de pedra em meio aos astros e os
galões.
Para onde quer que eu viaje a Grécia me dói;
cadeias de montanhas, arquipélagos, granitos escala-
     vrados.
O navio a viajar é o “Agonia 937”. 


O poema em questão  refere-se ao mar enquanto uma imagem que lembra partida, um adeus incerto, que não se sabe definitivo ou não.  Ao mesmo tempo não é centrado em uma partida individual. O memorialismo, neste poema,  é essencialmente coletivo. Escrito em 1937, quando a Grécia  estava, uma vez mais, como ocorreu em quase todo o século XX, com graves conturbações políticas internas e externas. Confusões, rebeliões marcam as terras gregas. O escritor grego materializa, desta forma, a angústia de sua gente. As partidas involuntárias cheias de dor. A dor de largar terras conhecidas, as memórias enraizadas e caminhar para um exílio indeterminado sob todos os pontos de vista.  A ausência de um futuro, a incerteza dos devires.

Ler Seféris é a entrada para um universo centrado no movente. Sente-se, em seus silêncios, assim como em suas imagens, uma incrível potência. Sua literatura dialoga com o  mais alto grau de humanização. Dá-nos  a certeza de que não estamos tão sozinhos nos labirintos e bifurcações  infinitos de nossa interioridade. Ler Seféris pode ser uma entrada para a liberdade que projeta altos sonhos nos universos insondáveis da imaginação, da sensibilidade. Ela recupera, resgata a potencialidade interior de se materializar realidades supostamente inatingíveis.
Infelizmente o escritor grego nunca foi tão atual. Assistimos, derrotados, imagens de povos que, na mesma medida de Seféris, deixam suas memórias afogadas  e de forma humilhante pedem asilo em terras desconhecidas.  


BIBLIOGRAFIA

BAPTISTA, Ana Maria Haddad. Giorgos Seféris: mar, mares, memórias. São Paulo, Arte-Livros Editora, 2011.
_________________________. Tempo-memória. São Paulo, Arké Editora, 2007.
________________. Ilíada de Homero: volumes I e II. Tradução de Haroldo de Campos.
Lisboa, Edições 70, Ltda, [s.d.].
SEFÉRIS, Giórgos. El Estilo Griego volumes I, II e III. Tradução de Selma Ancira. México, Fondo de Cultura Económica, [s.d.].
______________. Poemas. Seleção, introdução, tradução direta do grego  e notas de José Paulo Paes. São Paulo, Nova Alexandria, 1995.
_______________. Trois poèmes secrets. Tradução de Yves Bonnefoy e Lorand Gaspar. França, Gallimard, 1980.
_______________. Pages de Journal. Tradução de Denis Kohler. Paris, Mercure de France, [s.d.].
_______________. Six nuits sur L’acropole. Tradução de Gilles Ortlieb. Paris, Mercure de France, [s.d.].
_______________. Complete Poems, Londres: Princeton University Press, 1995.

_______________. Dias, Madri: Editora Alianza Editorial, 1997.

_______________. Poemas, Rio de Janeiro: Editora Opera Mundi, 1971.

_______________. ΠOIHMATA, Atenas: Editora Ikaros, 2004.

SOULI, Sofia. Mitologia Griega. Atenas, Editora Toubi’s, 2002.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro, Paz e Terra, [s.d.].

Obs: Grande parte deste texto foi publicado pela  Revista Filosofia (Editora Escala).
















[1] A tradução, diretamente do grego, é de José Paulo Paes. Entretanto, foi cotejada com o texto original. Usamos a obra da décima oitava edição do Poímata ,Atenas,Ikaros, 2004.

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