Néctar de Letras: Enterrem meu
coração na curva dos mares de memórias
Ana Maria Haddad Baptista
“Μην ξεχνάτε ότι η στιγμή της δημιουργίας συνδέεται σε
κάθε στιγμή της ζωής.”
“Não esqueça que o
instante da criação está ligado a todo o instante da vida.”
Giorgos
Seféris
“Η ανθρώπινη ζωή γίνεται του χρόνου: η ώρα της σποράς, την
πάροδο του χρόνου, την ώρα της θλίψης, την ώρα της χαράς, μια φορά για την
αγάπη, την ώρα της μοναξιάς.”
“A vida humana é feita de tempos: tempo de semear, tempo
de colher, tempo de tristeza, tempo de alegria, tempo de amor, tempo de
solidão.”
Giorgos
Seféris
A vida humana é feita de humilhações
que confrontam os verdadeiros valores. Os refugiados colocam em pauta, nunca
escala global, quem é quem. Pode-se mais do que em qualquer outro momento da
história da humanidade, observar a arrogância da Europa, o cinismo americano
e a recepção aberta do Brasil (apesar de
tudo) diante de um quadro monstruoso que arrasa memórias coletivas e
individuais.
Giorgos Seféris é um escritor grego do século XX.
Nasceu em Esmirna, Turquia, em 1900, que na época ainda era uma cidade grega da
Ásia Menor. Morreu em Atenas em 1971.
Primeiro escritor grego a conseguir um Nobel em Literatura no ano de
1963. Pouco conhecido e lido nos dias
atuais, mesmo na Grécia.
Sua obra,
tecida de forma detalhada e bastante reflexiva,
compõe-se de poesia e prosa.
Traduzida para muitos idiomas, contudo,
atualmente, é quase que uma façanha encontrar a obra do autor, em especial,
sua obra em prosa que consiste em diários, ensaios e cartas. Todas elas com um
altíssimo grau de poeticidade. A prosa
de Seféris é uma contínua reflexão a respeito do papel da literatura e
do fazer literário. Sua relação, no momento enquanto escreve, com o passado é a
de uma permanente continuidade com os
valores culturais, gerais do passado helênico. O conceito de temporalidade no
conjunto de obras de Seféris é o de indivisibilidade. Tempos que se misturam.
Alternam-se sem uma ordem previamente estabelecida. Ritmos de tempo-memória
sobrepostos.
De um modo
geral, não é incomum na virada do final do século XIX para o século XX,
encontrarmos uma grande grau de memorialismo nas mais variadas literaturas
mundiais. As evidências históricas levam a crer que devido à queda de grandes
impérios, por exemplo o Império Otomano, assim como a dissolução de outros imperialismos, assim como a independência de muitos países, levaram, em
parte, os escritores a uma valorização de elementos nacionais.
O que se pode
entender por um escritor memorialista? Na maioria das vezes um escritor
memorialista está preocupado com suas
próprias memórias. Conforme se sabe, não é incomum os grandes relatos de uma
vida inteira, ou de partes de uma vida centradas em suas próprias experiências,
inclusive, muitas vezes, beirando um certo grau de narcisismo.
Num
contexto onde o modelo de subjetividade
ganha novos contornos e um dos traços de tais contornos é a valorização extrema
e quase inútil sobre os próprios
caminhos, sob nossa perspectiva, Seféris, é bastante singular. O que
menos importa é o seu próprio eu. Por intermédio de suas memórias o escritor
grego procura, sempre, ressaltar os outros, especialmente os que ficaram à
margem. Nessa medida, recupera o nobre papel dos poetas da Antiguidade, ou
seja, aqueles que guiados pelas Musas vão em busca do passado coletivo de seu
povo, os eternos mestres da verdade.
Seféris é
autor de um projeto poético consciente da grande importância do papel do
escritor. Os pressupostos
epistemológicos de sua literatura evidenciam sua postura. O escritor grego, via
de regra, recupera imagens mitológicas,
grandes escritores do passado grego e de sua geração.
O papel do
poeta não é equivalente ao do historiador. Contudo, é inegável que o escritor rivaliza-se com o
historiador, entretanto, com muitas vantagens. O poeta não possui nenhum
compromisso aparente para com a verdade. Seu compromisso maior é com a própria vida, com a dignidade humana.
O historiador, por mais que seu discurso contenha
elementos de ficção, está atrelado
ao peso dos fatos e dos documentos. Nunca vai possuir a leveza que a liberdade
poética outorga ao poeta. Entre o historiador e o leitor existe um acordo
tácito, implícito do compromisso em resgatar uma memória “onde realmente as
coisas ocorreram”.
Seféris é
consciente de que não existe uma coincidência do tempo em que escreve com os
fatos que narra, mas por isso mesmo evidencia aqueles fatos e pessoas que podem
ser importantes para a recuperação do passado e analisar o presente sem inúteis nostalgias.
Mar, mares, memórias
A obra de
Seféris insiste num tema muito caro, de
um modo geral, para a maioria dos
gregos: o mar. As referências ao mar são
contínuas e insistentes na prosa e na poesia do escritor grego e alude a várias
coisas. O poema [1] a seguir é um dos inúmeros exemplos:
À maneira de G.S.
Para
onde quer que eu viaje, a Grécia me dói.
No
Pélion em meio às castanheiras a camisa do
Centauro
deslizava
entre as folhas para vir enrolar-se no meu corpo
enquanto eu
galgava a encosta e o mar me
acompanhava
até chegarmos
às águas da montanha.
em Santorini
tocando eu ilhas que afundavam
escutando uma
flauta soar algures entre as pedras-pomes
a mão
pregou-me à amurada do navio
uma seta de
súbito lançada
dos confins
da esvanecida juventude.
Em Micenas
ergui as grandes pedras e os tesouros dos
Átridas
e junto deles
me deitei no hotel “A Bela Helena de
Menelau”;
só
desapareceram na alva ao canto da Cassandra
com um galo a
lhe pender do colo negro.
Em Sptese em
Míconos em Poros
enfadou-me
ouvir as barcarolas.
Que
pretendem esses todos quando dizem
que podem ser
achados em Atenas ou no Pireu?
Um vem de
Salamina e quer saber de um outro se ele
“vem da Omônia”
“Não, venho
do Sintagma” responde ancho de si
“Encontrei o
Yánnis convidou-me a um sorvete.”
No entrementes
é a Grécia que viaja
não sabemos
de nada não sabemos quem somos nós
desembarcados
ignoramos a
amargura do porto quando os barcos todos
já partiram
escarnecemos
aqueles que ainda a sentem.
Estranha
gente que pretende achar-se na Ática e não está
em parte alguma;
compram
confeitos de amêndoas quando vão casar
usam “loção para o cabelo” fotografam-se
o homem que
hoje vi sentado em frente de um telão com
flores e pombinhos
permitia que
a velha mão do fotógrafo alisasse as rugas
que lhe
deixaram na pele do rosto
os galos do
céu.
No
entrementes é a Grécia que viaja ela toda que viaja
e se “vemos o
mar Egeu a florir de cadáveres”
são daqueles
que quiseram tomar o grande barco
nadando-lhe ao encontro
daqueles que
cansaram de esperar navios que já não
partem o “Samotrácia” o “Elsie” o “Ambracia”.
Apitam os
navios agora que anoitece no Pireu
todos apitam
todos mas não se move cabestrante
algum
corrente alguma que úmida cintile à luz agoni-
zante
o capitão está ali de pedra em meio aos
astros e os
galões.
Para onde
quer que eu viaje a Grécia me dói;
cadeias de
montanhas, arquipélagos, granitos escala-
vrados.
O navio a
viajar é o “Agonia 937”.
O poema em
questão refere-se ao mar enquanto uma
imagem que lembra partida, um adeus incerto, que não se sabe definitivo ou
não. Ao mesmo tempo não é centrado em
uma partida individual. O memorialismo, neste poema, é essencialmente coletivo. Escrito em 1937,
quando a Grécia estava, uma vez mais,
como ocorreu em quase todo o século XX, com graves conturbações políticas
internas e externas. Confusões, rebeliões marcam as terras gregas. O escritor
grego materializa, desta forma, a angústia de sua gente. As partidas
involuntárias cheias de dor. A dor de largar terras conhecidas, as memórias
enraizadas e caminhar para um exílio indeterminado sob todos os pontos de
vista. A ausência de um futuro, a
incerteza dos devires.
Ler
Seféris é a entrada para um universo centrado no movente. Sente-se, em seus
silêncios, assim como em suas imagens, uma incrível potência. Sua literatura
dialoga com o mais alto grau de
humanização. Dá-nos a certeza de que não
estamos tão sozinhos nos labirintos e bifurcações infinitos de nossa interioridade. Ler Seféris
pode ser uma entrada para a liberdade que projeta altos sonhos nos universos
insondáveis da imaginação, da sensibilidade. Ela recupera, resgata a
potencialidade interior de se materializar realidades supostamente
inatingíveis.
Infelizmente o escritor grego nunca foi tão atual.
Assistimos, derrotados, imagens de
povos que, na mesma medida de Seféris, deixam suas memórias afogadas e de
forma humilhante pedem asilo em terras desconhecidas.
BIBLIOGRAFIA
BAPTISTA, Ana
Maria Haddad. Giorgos Seféris: mar, mares, memórias. São Paulo, Arte-Livros
Editora, 2011.
_________________________.
Tempo-memória. São Paulo, Arké
Editora, 2007.
________________.
Ilíada de Homero: volumes I e II. Tradução
de Haroldo de Campos.
Lisboa,
Edições 70, Ltda, [s.d.].
SEFÉRIS,
Giórgos. El Estilo Griego volumes I, II e
III. Tradução de Selma Ancira. México, Fondo de Cultura Económica, [s.d.].
______________.
Poemas. Seleção, introdução, tradução
direta do grego e notas de José Paulo
Paes. São Paulo, Nova Alexandria, 1995.
_______________.
Trois poèmes secrets. Tradução de
Yves Bonnefoy e Lorand Gaspar. França, Gallimard, 1980.
_______________.
Pages de Journal. Tradução de Denis
Kohler. Paris, Mercure de France, [s.d.].
_______________.
Six nuits sur L’acropole. Tradução de
Gilles Ortlieb. Paris, Mercure de France, [s.d.].
_______________.
Complete Poems, Londres: Princeton
University Press, 1995.
_______________.
Dias, Madri: Editora Alianza
Editorial, 1997.
_______________.
Poemas, Rio de Janeiro: Editora Opera
Mundi, 1971.
_______________.
ΠOIHMATA, Atenas: Editora Ikaros, 2004.
SOULI, Sofia.
Mitologia Griega. Atenas, Editora
Toubi’s, 2002.
VERNANT,
Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os
gregos: estudos de psicologia histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, [s.d.].
Obs: Grande parte deste texto foi
publicado pela Revista Filosofia
(Editora Escala).
[1] A
tradução, diretamente do grego, é de José Paulo Paes. Entretanto, foi cotejada
com o texto original. Usamos a obra da décima oitava edição do Poímata ,Atenas,Ikaros, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário