sexta-feira, 18 de setembro de 2015


Chaplin ou um exemplo a seguir


Ana Maria Haddad Baptista



De tempos em tempos a humanidade, de acordo com diversos pensadores das mais diversas áreas do conhecimento,  passa por verdadeiros vazios. Vazios existenciais. Vazios teóricos. Vazios de artes. Enfim, há um deserto de boas ideias. E nessa medida, tudo parece igual. Monótono. Sem originalidade. A cópia da cópia. Imitações baratas e ordinárias.
Tudo indica que estamos atravessando um período como o citado. Cães, homens e mulheres estão quase na mesma escala da moda e da alimentação, por exemplo. Cães e outros bichos transportados por motoristas particulares ou táxis! Cães ficam em hotéis luxuosos! Cobras e ursos polares são tratados com carne de primeira e outros petiscos  alimentares! O homem, em nossos tempos, vai  para o espaço sideral com frequência regular! No entanto...milhões de pessoas morrem de fome e sede! Pasmem! Os refugiados sistematicamente humilhados  e disputando bisnagas de pão tanto quanto galinhas disputam minhocas!
Mas.
Justamente em épocas de grandes vazios de reflexão (em especial a reflexão a respeito do existencial) surgem raros pensadores. Aqueles que, de fato, mudam, radicalmente conceitos.
Estamos nos referindo ao gênio Charles Chaplin!  O livro Minha Vida: Chaplin, é uma excelente autobiografia relançada no Brasil, recentemente, pela Editora José Olympio. E, nessa medida, um bálsamo para os dias desencantados com os quais nos deparamos na atualidade. Temos uma escrita, estritamente, saborosa! E de sobra um exemplo de vida! Chaplin, poucos sabem, passou pelas maiores misérias que um ser humano pode ser submetido. Desde criança desafiou a vida no que ela tem de mais miserável como nos indica a seguinte passagem do livro: "Nos primeiros dias senti-me perdido e infeliz, pois no asilo eu sempre sentia que mamãe estava perto, o que era um consolo, mas em Hanwell parecíamos estar a milhões de distância. Sydney [o irmão mais velho de Chaplin] e eu passamos do pavilhão de seleção para a escola, onde nos separaram - Sydney indo para a turma dos maiores e eu para a dos pequenos. Dormíamos em pavilhões diferentes e assim raramente nos avistávamos. Eu tinha pouco mais de seis anos e estava só, o que me fazia sentir arrasado; especialmente numa noite de verão à hora de dormir durante as preces, quando ajoelhado com outros vinte garotinhos no centro do pavilhão, todos de camisola, eu olhava pelas janelas oblongas o sol que se punha e as colinas onduladas e sentia-me um estranho àquilo tudo enquanto cantávamos com vozes guturais e desafinadas". Enfim, sua infância, com a mãe doente e o pai, um artista decadente e que bebia muito, foi um desastre. Caminhou pelas ruas de Londres, durante anos, tentando ganhar tostões para sobreviver, entre as idas e vindas de sua mãe  pelos hospitais e sanatórios. Na verdade, teve todas as condições para virar um bandido ou similar.
No entanto, Chaplin, de acordo com suas palavras, sempre percebeu que gostava do palco. Mas acima de qualquer coisa: jamais se dobrou a modelos preestabelecidos. Passou por dezenas de companhias de teatro, de inúmeros estilos, mas nunca ficou muito tempo. Sempre que se percebia na mesmice, mudava de rumo e de tom. O que isso significa? Que a originalidade do maior mito do cinema se sobrepôs aos infames limites daqueles que somente buscam as cópias e as habituais repetições. Chaplin, acima de qualquer coisa, desafiou os modelos e fórmulas que em sua época davam certo. Houve, de sua parte, uma teimosia e persistência sem precedentes para, realmente, conseguir impor os seus sonhos de artista.
A concretização de Carlitos, a sua originalidade, nas palavras de Chaplin: "Eu não tinha a menor ideia sobre a caracterização que iria usar.(...) Contudo, a caminho do guarda-roupa, pensei em usar umas calças bem largas, estilo balão, sapatos enormes, um casaquinho bem apertado e um chapéu-coco pequenino, além de uma bengalinha. Queria que tudo estivesse em contradição: as calças fofas com o casaco justo, os sapatões com o chapeuzinho. (...) Não tinha nenhuma ideia, igualmente, sobre a psicologia da personagem. Mas no momento em que assim me vesti, as roupas e a caracterização me fizeram compreender a espécie de pessoa que ele era. Comecei a conhecê-lo e, no momento em que entrei no palco de filmagem, ele já havia nascido. Estava totalmente definido."
E foi a partir, em especial, do momento descrito por Chaplin, que ele pode dar continuidade a tudo que estava, de certa maneira, contido em seus sonhos, devaneios e memórias de sua própria vida. Abre-se para ele um mundo cada vez mais promissor, diga-se de passagem, em todos os sentidos. Chaplin criou um tipo imortal. Atemporal. O tipo, totalmente original, é o conceito (cheio de multiplicidades) do poeta, do sonhador, do vagabundo, assim como do cavalheiro, do solitário, do cientista e que pode até roubar uma bala ou pirulito de uma criança!
Finalmente, com a leitura deste livro, simplesmente sublime, reavaliamos o mundo à nossa volta. Concluímos, uma vez mais, que uma existência, por mais simples e limitada que seja, pode ser reinventada. A vida é desafiadora. A realidade é cruel, no entanto pode ser suavizada, em especial, a partir dos artistas. Ou seja, a partir daqueles que conseguem nos levar a um universo original. Infinito. Inesgotável. Pleno de novidades.


Obs: Grande parte deste texto foi publicado pela Revista Filosofia (Editora Escala).

domingo, 13 de setembro de 2015





Néctar de Letras: Enterrem meu coração na curva dos mares de memórias

Ana Maria Haddad Baptista


“Μην ξεχνάτε ότι η στιγμή της δημιουργίας συνδέεται σε κάθε στιγμή της ζωής.”
“Não esqueça que o instante da criação está ligado a todo o instante da vida.”
Giorgos Seféris

“Η ανθρώπινη ζωή γίνεται του χρόνου: η ώρα της σποράς, την πάροδο του χρόνου, την ώρα της θλίψης, την ώρα της χαράς, μια φορά για την αγάπη, την ώρα της μοναξιάς.”
“A vida humana é feita de tempos: tempo de semear, tempo de colher, tempo de tristeza, tempo de alegria, tempo de amor, tempo de solidão.”
Giorgos Seféris

A vida humana é feita de humilhações que confrontam os verdadeiros valores. Os refugiados colocam em pauta, nunca escala global, quem é quem. Pode-se mais do que em qualquer outro momento da história da humanidade, observar a arrogância da Europa, o cinismo americano e  a recepção aberta do Brasil (apesar de tudo) diante de um quadro monstruoso que arrasa memórias coletivas e individuais.
Giorgos  Seféris é um escritor grego do século XX. Nasceu em Esmirna, Turquia, em 1900, que na época ainda era uma cidade grega da Ásia Menor. Morreu em Atenas em 1971.  Primeiro escritor grego a conseguir um Nobel em Literatura no ano de 1963.  Pouco conhecido e lido nos dias atuais, mesmo na Grécia.
Sua obra, tecida de forma detalhada e bastante reflexiva,  compõe-se de poesia e prosa.  Traduzida para muitos idiomas, contudo,  atualmente, é quase que uma façanha encontrar a obra do autor, em especial, sua obra em prosa que consiste em diários, ensaios e cartas. Todas elas com um altíssimo grau de poeticidade. A prosa  de Seféris é uma contínua reflexão a respeito do papel da literatura e do fazer literário. Sua relação, no momento enquanto escreve, com o passado é a de uma permanente continuidade  com os valores culturais, gerais do passado helênico. O conceito de temporalidade no conjunto de obras de Seféris é o de indivisibilidade. Tempos que se misturam. Alternam-se sem uma ordem previamente estabelecida. Ritmos de tempo-memória sobrepostos.
De um modo geral, não é incomum na virada do final do século XIX para o século XX, encontrarmos uma grande grau de memorialismo nas mais variadas literaturas mundiais. As evidências históricas levam a crer que devido à queda de grandes impérios, por exemplo o Império Otomano, assim como a dissolução de outros  imperialismos, assim como  a independência de muitos países, levaram, em parte,  os escritores a uma  valorização de elementos nacionais.
O que se pode entender por um escritor memorialista? Na maioria das vezes um escritor memorialista está preocupado  com suas próprias memórias. Conforme se sabe, não é incomum os grandes relatos de uma vida inteira, ou de partes de uma vida centradas em suas próprias experiências, inclusive, muitas vezes, beirando um certo grau de narcisismo.
Num contexto  onde o modelo de subjetividade ganha novos contornos e um dos traços de tais contornos é a valorização extrema e quase inútil sobre os próprios  caminhos, sob nossa perspectiva, Seféris, é bastante singular. O que menos importa é o seu próprio eu. Por intermédio de suas memórias o escritor grego procura, sempre, ressaltar os outros, especialmente os que ficaram à margem. Nessa medida, recupera o nobre papel dos poetas da Antiguidade, ou seja, aqueles que guiados pelas Musas vão em busca do passado coletivo de seu povo, os eternos mestres da verdade.
Seféris é autor de um projeto poético consciente da grande importância do papel do escritor.  Os pressupostos epistemológicos de sua literatura evidenciam sua postura. O escritor grego, via de regra,  recupera imagens mitológicas, grandes escritores do passado grego e de sua geração.
O papel do poeta não é equivalente ao do historiador. Contudo,  é inegável que o escritor rivaliza-se com o historiador, entretanto, com muitas vantagens. O poeta não possui nenhum compromisso aparente para com a verdade. Seu compromisso maior  é com a própria vida, com a dignidade humana.
 O historiador, por mais que seu discurso  contenha  elementos de ficção, está atrelado  ao peso dos fatos e dos documentos.  Nunca vai possuir a leveza que a liberdade poética outorga ao poeta. Entre o historiador e o leitor existe um acordo tácito, implícito do compromisso em resgatar uma memória “onde realmente as coisas ocorreram”.
Seféris é consciente de que não existe uma coincidência do tempo em que escreve com os fatos que narra, mas por isso mesmo evidencia aqueles fatos e pessoas que podem ser importantes para a recuperação do passado e analisar o presente sem  inúteis nostalgias.


Mar, mares, memórias

A obra de Seféris  insiste num tema muito caro, de um modo geral, para a  maioria dos gregos: o mar.  As referências ao mar são contínuas e insistentes na prosa e na poesia do escritor grego e alude a várias coisas. O poema [1]  a seguir é um dos inúmeros exemplos:

 À maneira de G.S.

Para onde quer que eu viaje, a Grécia me dói.

No Pélion em meio às castanheiras a camisa do
      Centauro
deslizava entre as folhas para vir enrolar-se no meu corpo
enquanto eu galgava a encosta e o mar me
        acompanhava
até chegarmos às águas da montanha.
em Santorini tocando eu ilhas que afundavam
escutando uma flauta soar algures entre as pedras-pomes
a mão pregou-me à amurada do navio
uma seta de súbito lançada
dos confins da esvanecida juventude.
Em Micenas ergui as grandes pedras e os tesouros dos
      Átridas
e junto deles me deitei no hotel “A Bela Helena de
     Menelau”;
só desapareceram na alva ao canto da Cassandra
com um galo a lhe pender do colo negro.
Em Sptese em Míconos em Poros
enfadou-me ouvir as barcarolas.

Que pretendem esses todos quando dizem
que podem ser achados em Atenas ou no Pireu?
Um vem de Salamina e quer saber de um outro se ele
       “vem da Omônia”
“Não, venho do Sintagma” responde ancho de si
“Encontrei o Yánnis convidou-me a um sorvete.”
No entrementes é a Grécia que viaja
não sabemos de nada não sabemos quem somos nós
       desembarcados
ignoramos a amargura do porto quando os barcos todos
      já partiram
escarnecemos aqueles que ainda a sentem.

Estranha gente que pretende achar-se na Ática e não está
      em parte alguma;
compram confeitos de amêndoas quando vão casar
usam  “loção para o cabelo” fotografam-se
o homem que hoje vi sentado em frente de um telão com
       flores e pombinhos 
permitia que a velha mão do fotógrafo alisasse as rugas
que lhe deixaram na pele do rosto
os galos do céu.

No entrementes é a Grécia que viaja ela toda que viaja
e se “vemos o mar Egeu a florir de cadáveres”
são daqueles que quiseram tomar o grande  barco
      nadando-lhe ao encontro
daqueles que cansaram de esperar navios que já não
partem o  “Samotrácia” o “Elsie” o “Ambracia”.
Apitam os navios agora que anoitece no Pireu
todos apitam todos mas não se move cabestrante
algum corrente alguma que úmida cintile à luz agoni-
zante
       o capitão está ali de pedra em meio aos astros e os
galões.
Para onde quer que eu viaje a Grécia me dói;
cadeias de montanhas, arquipélagos, granitos escala-
     vrados.
O navio a viajar é o “Agonia 937”. 


O poema em questão  refere-se ao mar enquanto uma imagem que lembra partida, um adeus incerto, que não se sabe definitivo ou não.  Ao mesmo tempo não é centrado em uma partida individual. O memorialismo, neste poema,  é essencialmente coletivo. Escrito em 1937, quando a Grécia  estava, uma vez mais, como ocorreu em quase todo o século XX, com graves conturbações políticas internas e externas. Confusões, rebeliões marcam as terras gregas. O escritor grego materializa, desta forma, a angústia de sua gente. As partidas involuntárias cheias de dor. A dor de largar terras conhecidas, as memórias enraizadas e caminhar para um exílio indeterminado sob todos os pontos de vista.  A ausência de um futuro, a incerteza dos devires.

Ler Seféris é a entrada para um universo centrado no movente. Sente-se, em seus silêncios, assim como em suas imagens, uma incrível potência. Sua literatura dialoga com o  mais alto grau de humanização. Dá-nos  a certeza de que não estamos tão sozinhos nos labirintos e bifurcações  infinitos de nossa interioridade. Ler Seféris pode ser uma entrada para a liberdade que projeta altos sonhos nos universos insondáveis da imaginação, da sensibilidade. Ela recupera, resgata a potencialidade interior de se materializar realidades supostamente inatingíveis.
Infelizmente o escritor grego nunca foi tão atual. Assistimos, derrotados, imagens de povos que, na mesma medida de Seféris, deixam suas memórias afogadas  e de forma humilhante pedem asilo em terras desconhecidas.  


BIBLIOGRAFIA

BAPTISTA, Ana Maria Haddad. Giorgos Seféris: mar, mares, memórias. São Paulo, Arte-Livros Editora, 2011.
_________________________. Tempo-memória. São Paulo, Arké Editora, 2007.
________________. Ilíada de Homero: volumes I e II. Tradução de Haroldo de Campos.
Lisboa, Edições 70, Ltda, [s.d.].
SEFÉRIS, Giórgos. El Estilo Griego volumes I, II e III. Tradução de Selma Ancira. México, Fondo de Cultura Económica, [s.d.].
______________. Poemas. Seleção, introdução, tradução direta do grego  e notas de José Paulo Paes. São Paulo, Nova Alexandria, 1995.
_______________. Trois poèmes secrets. Tradução de Yves Bonnefoy e Lorand Gaspar. França, Gallimard, 1980.
_______________. Pages de Journal. Tradução de Denis Kohler. Paris, Mercure de France, [s.d.].
_______________. Six nuits sur L’acropole. Tradução de Gilles Ortlieb. Paris, Mercure de France, [s.d.].
_______________. Complete Poems, Londres: Princeton University Press, 1995.

_______________. Dias, Madri: Editora Alianza Editorial, 1997.

_______________. Poemas, Rio de Janeiro: Editora Opera Mundi, 1971.

_______________. ΠOIHMATA, Atenas: Editora Ikaros, 2004.

SOULI, Sofia. Mitologia Griega. Atenas, Editora Toubi’s, 2002.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro, Paz e Terra, [s.d.].

Obs: Grande parte deste texto foi publicado pela  Revista Filosofia (Editora Escala).
















[1] A tradução, diretamente do grego, é de José Paulo Paes. Entretanto, foi cotejada com o texto original. Usamos a obra da décima oitava edição do Poímata ,Atenas,Ikaros, 2004.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Néctar de Letras: Poesias de Vida

Ana Maria Haddad Baptista

A contemporaneidade, ninguém duvida, tão informatizada, globalizada...fala, cada vez mais, línguas que, praticamente, não são entendidas. Por quê? Porque não bastam os meios de comunicação. Não basta ter o tal do 'acesso à informação' (que horror... chavão mais desgastado). É preciso que a humanidade, de uma vez por todas, se entenda. Minimamente. Babel já deveria ter sido minimizada. E, paradoxalmente, não foi! O bom e velho Deleuze já havia avisado: "só há intersubjetividade artística". De acordo com um dos filósofos mais ternurosos  que tivemos, somente os signos artísticos (e entre eles os verbais) visto que imateriais e sensíveis, poderiam atenuar a famosa incompletude (hiatos sempre insondáveis) entre as subjetividades.
Mas. De repente a palavra poética teimosamente se ergue. Caligrafia Silenciosa, George Popescu, Editora Rocco, graças à tradução de Marco Lucchesi, vem para o público brasileiro. E pasmem! O tradutor não esconde o texto original. A obra é bilíngue.  Lucchesi não é daqueles tradutores que gastam quase metade da obra para justificar seus 'métodos de tradução'. O grande método e mérito de Lucchesi é a sensibilidade+repertório. A capacidade de transpor seus limites de objetividade e atingir subjetividades. Temporalidades humanas. Eis o melhor método de tradução. Isto é admirável. Afinal...conforme se sabe Lucchesi é poeta. Alma de poeta. Olhar de poeta. E isso muda tudo.
A introdução da obra é simplesmente fascinante. Nas palavras de Popescu: "A poesia não deve mudar o mundo nem sequer melhorar a condição humana, tampouco ser uma alternativa, mas simplesmente uma medicina naturans, uma saída do círculo impossível do destino. A poesia destrói a ilusória escala de valores ditados pela moda, inverte o avesso mediante o retorno da tradição, recusa o perigoso jogo de dados e assume apenas um único risco: um halo por meio do qual a luz da Palavra é filtrada, quando esta se encarna dentro de um verso que tangencia o divino."
A poesia, a literatura, jamais mudaram o mundo. Saramago, em momentos de grande amargura diante das miserabilidades humanas (lembremos Os Miseráveis de Victor Hugo), declarava que se ele ou outros escritores jamais tivessem existido o mundo estaria do mesmo jeito. Cá entre nós: o homem é uma invenção que nunca deu certo. Convenhamos senhores...(mal posso me lembrar que se os poucos detentores de uma fortuna sem limites abrissem mão de apenas quatro ou cinco por cento de seus bens, não haveria, na prática, mais nenhum miserável neste planeta. Que amargor!) E, aqui, Popescu: "Na densa e silenciosa escuridão como a noite/ de um amor desperdiçado/ sequer uma palavra/ só o nariz erguido na direção de um céu invisível/ zigoma apertado nesta imagem/ que cai no teu ventre como um cão/ magoado na soleira de sua última vontade/ de tornar-se homem."
Contudo, a poesia aponta a probabilidade de um outro mundo. Possibilidades de outros caminhos com os quais podemos, ao menos, sonhar. Delirar! E os delírios poéticos afagam/afogam/ nossas mágoas mais profundas. Novamente Popescu nos responde: "mas não é assim - respondo-/ com o olhar profundo da memória/ se cavares nessa arqueologia/ que a transparência também faz tua/ irás descobrir - basta que o desejes -/ basta que possas ainda querer/ irás redescobrir todas as pobres existências/ que me serviram de escudo e muro de defesa/ no tempo mágico de uma só piedade."
Caligrafia Silenciosa  integra a coleção Espelho do Mundo. Nas palavras do tradutor : "é uma janela do presente, aberta para  a criação a poética dos quatro cantos do globo, no diálogo entre os povos e na cultura da paz. Não o mundo, mas sua representação. Não a imagem, mas o espelho incerto, no qual brilham a diferença, a beleza do rosto, nas vozes de um mundo novo, em construção." E estas palavras, belezuramente, traduzem (inclusive) o melhor da literatura: a luta, desesperadora, de apaziguar as diferenças. A luta para dar sentidos a existências anônimas. E o sentido e as grandes mudanças somente podem ser concretizadas pelo pensamento. E o pensamento somente pode ser traduzido pela linguagem. Ezra Pound, habitualmente,  irado, bravo, indignado, inconformado,  dizia que quando a humanidade  estava quase 'falindo'...a literatura era convocada. Na derrocada do pensamento o escritor é lembrado. O poeta é convocado. O único que consegue "ouvir estrelas". E, sobretudo responder: "Como se dirá borboleta na língua das borboletas?/ Borboleta? Pura  e simplesmente?/ E qual o significado de borboleta? Na língua delas, é claro./ Não sei. O que sei é que num mês de junho sem nome, nas colinas próximas de Áquila, no coração da Itália, uma rosa me disse: 'há quem saiba - disse -, há quem possa conversar com as borboletas. Com as vivas e com as que/ [ já não existem." O poeta (em especial, os malditos) conversa com estrelas. E não venha a NASA com seus tentáculos, destruidores de sonhos, com teorias de 'estrelas mortas', 'abolição de São Jorge matando o dragão'. Estrelas não morrem. O poeta conversa com seu brilho que atravessa as temporalidades.  A palavra poética traduz, sim,  a fala de elefantes,  formigas, tartarugas. Ah! E  a de dragões!