sexta-feira, 1 de maio de 2015



Néctar de Letras: Aquelas (es) que trabalham com e entre as palavras


Ana Maria Haddad Baptista



Imensidão da miséria


Hoje é o Dia do Trabalhador. Na maior parte do planeta. Dia daqueles que, cada vez mais, enriquecem os patrões, por usar um clichê ordinário e desgastado. Dia daqueles que sobrevivem às custas de um trabalho fatigante. Não instigante. Lamento. Profundamente. Contudo, lamento muito mais aqueles que perderam a capacidade de indignação.
 Vivem vidas veludosas. Veladas.
Adocicadas. Recheadas. Refinadas.
Peneiradas.
Fascinadas pelo medíocre!
 Aproveito para lembrar que os escritores, de verdade, são aqueles (as) que trabalham com as palavras. Entre as palavras. E quero falar de uma trabalhadora que poucos conhecem, ou seja, de Alice Munro. Uma das poucas mulheres deste mundo que conseguiu ganhar um prêmio Nobel de Literatura. Desde que este foi instituído raras escritoras conseguiram levar um para suas casas. Por quê? Será que as mulheres possuem algo a menos que não conseguem escrever literatura considerada de primeira linha? Será que as Musas odeiam as mulheres? Justo as grandes prolongadoras das memórias? Evidentemente, conforme se sabe, as razões são outras. Historicamente as mulheres foram deixadas de lado, sempre, para outras formas de ocupação. Mesmo com todos os avanços em busca da liberação feminina, a mulher, durante o século XX, pouco conseguiu. Prova disso é o Nobel de Literatura (diga-se de passagem não somente o Nobel de Literatura...).

Magnitudes do Universo

Nessa medida, mais do que nunca, devemos conhecer melhor a grande Alice Munro, escritora canadense. O amor de uma boa mulher,  tradução de Jorio Dauster, Cia das Letras, comprova, com certeza, a materialização de uma obra literária que carrega um alto teor de competência e habilidade na escritura de contos.
Os contos de Alice Munro provam que a contemporaneidade consegue, ainda, olhares agudos, em especial, a situações do cotidiano, que vão além de uma simples crônica.  O amor de uma boa mulher  traz oito contos longos. Diferentemente da maioria do gênero, vê-se nesta literatura um espaço raro de aprofundamento de análise do comportamento humano. Da alma humana. Como no seguinte trecho: “Vez por outra, contudo, vinha um momento em que tudo parecia ter algo para lhe dizer. Os arbustos agitados, a luz descolorante. Como um relâmpago, de roldão, sem dar tempo para se concentrar. Logo quando seria desejável ter um panorama da situação, você era confrontado com uma visão acelerada e ridícula, como se estivesse num brinquedo de parque de diversões. E por causa disso admitia a ideia errada, sem dúvida a ideia errada, de que alguém morto pudesse estar vivo e morando em Jacarta”.


Magnitudes das Palavras

A literatura de Alice Munro não é, de forma alguma, feminista. Contudo, consegue desvendar de maneira primorosa e detalhada a alma feminina. Seus desdobramentos mais íntimos. A alma feminina sem julgamentos. Uma literatura sem análise das atitudes de personagens. A escritora, na construção de seus contos, age como se estivesse a uma distância que busca isenção, ao mesmo tempo que suas lentes agudas conseguem dar os pormenores das situações descritas com alto grau de sensibilidade.
Na verdade, a obra como um todo, o que nos diz? Entre tantas outras coisas: que o mundo é complexo. Que a vida é a busca do preenchimento das incompletudes, não somente as imateriais. Que estamos imersos, individualmente, nos labirintos inescapáveis da solidão. Que quando pensamos que estamos imersos em águas de calmaria... turbilhões de poeira intentam cegar e subtrair momentos de segurança.  Que literatura é uma profunda camada de desconforto necessário para que possamos sobreviver com dignidade! E jamais perder a capacidade de protestar!


Obs: Grande parte deste texto foi publicado na Revista Filosofia/ Editora Escala.

Nenhum comentário:

Postar um comentário