Educação: O Carteiro
Imaterial ou uma reserva de signos
sensíveis
Ana Maria Haddad Baptista
Se pensarmos nas famosas questões que envolvem a recepção
das leituras, ou seja, em que medida as pessoas estão lendo? Antigamente se lia
mais do que hoje? Por que as pessoas leem tão pouco? Veremos que praticamente
todas as épocas se 'equivalem'. Basta um estudo sério e uma pesquisa mais
aguçada para que saibamos que a leitura sempre disputou com outras atividades.
E mais: a concorrência sempre foi desleal. Os saudosistas de um passado
idealizado e, muitas vezes, sem a menor base histórica, decretam, com um prazer
imbecil, que ninguém mais lê. As fundamentações são risíveis-ridículas. Entre
elas, por exemplo, que a televisão e a internet acabaram com a leitura. Facilmente
dedutível que nunca se leu tanto como hoje.
Carteiro Imaterial de Marco Lucchesi, editora José
Olympio, obra lançada recentemente, é um livro de ensaios. Uma das provas
materiais de que a boa literatura se
mantém mais viva do que nunca. Erudição que não humilha. Traduz-se em convites
pelos percursos do autor dialogando com pensadores, escritores. Lucchesi sabe
que os caminhos da literatura, (nas mais diversas dimensões), jamais foram
gratuitos.
Carteiro Imaterial é, como todos os livros de Lucchesi,
um livro de ensaios que se particulariza e desestabiliza o leitor. Quer pela
pluralidade, quer pela sua habitual poeticidade. Vamos ao título! Carteiro
lembra, docemente, mensageiro. A espera de uma carta. De um livro. Ou o
inesperado. Que delícia quando um livro enviado por um amigo surpreende!
Imaterial? Entre outras leituras possíveis a imaterialidade da obra em questão
reside, justamente, na emissão dos signos poéticos que integram um dos fios de
unidade do Carteiro Imaterial. Sabe-se:
os signos poéticos são aqueles desmaterializados porque nasceram de uma
sensibilidade. São os famosos signos espirituais. Os verdadeiros mensageiros da
comunicação efetiva. Signos poéticos. Os responsáveis pelas reais
intersubjetividades. Nessa medida, o Carteiro
desdobra-se em cartas e ensaios no sentido mais estrito. Antecedidos por um
sumário composto por verdadeiros ícones (no sentido de Peirce), em que apontam, para cada parte, o que irão
oferecer aos leitores. Destacamos da 'primeira
parte', intitulada por Lucchesi de Carteiro
Imaterial, Tragédia na Síria, um
texto de denúncia. Comovente. O texto é a prova cabal de que o escritor jamais
se desliga da vida. Literatura-Vida. O entrelaçamento necessário. "É
preciso rever a ideia inicial que se configurou acerca do EI, para enfrentá-lo
com parâmetros claros, num terreno ambíguo, no qual já não se pode mais
tergiversar, no enfretamento de duas guerras simultâneas: a física e a virtual.
Só o tempo será capaz de dizer qual das duas guerras causou maior número de
vítimas". E ao longo deste ensaio um diálogo comovente com seu amigo
jesuíta Paolo Dall'Oglio. Desaparecido em meio a tentativas corajosas de restabelecer
a paz no Oriente.
O lúdico inteligente, dissolução de tristezas, também está presente numa carta sensacional
que Lucchesi endereça ao gramático Evanildo Bechara "na ortografia dos
ideogramas", ou seja, "(...) alssemos, pois, karo mestre, o paviliao
da paz no kampo de batalia da ortografia. Ke cessem alfim as inuteis geras,
sange, e orror ke a etimolojia - tiranika! - nos impoe inklemente."
As armadilhas que cercam a tradução são pensadas no
livro. "A tradução é para sempre um gesto incompleto, um horizonte que se
afasta, quanto mais próximo se mostra ao observador. Não possui um centro
absoluto, capaz de legislar sobre o que se afasta e distancia, e não dispõe
tampouco de um código que decida sobre os limites entre contrafação e original".
E sobre o assunto Lucchesi possui experiência de sobra. Transita, inclusive na
obra em questão, com tranquilidade, pela Torre de Babel. Árabe, persa, romeno, italiano, grego e mais
uma dezena de línguas. Para fazer jus ao Carteiro
Imaterial somente lendo-o. Qualquer
apresentação de uma obra rica é lacunar, injusta e inconclusa. Os signos
poéticos emanados por esta obra denunciam a essência do autor: originalidade-generosidade-humanidade.
E, também, a atitude corajosa dos verdadeiros poetas que acreditam no fluxo e
refluxo de influências responsáveis por
transformações. O Carteiro responde,
de forma subjacente, uma questão antiga e muito cara a leitores, pensadores,
poetas, isto é, em que medida a poesia pode ser reflexiva e dar respostas a
questões intelectivas? Ou: em que medida
um poeta precisa do ensaio para questionamentos? Quais seriam as
fronteiras entre um ensaio literário e
poesia? Nessa medida, temos no Carteiro
uma poesia que pensa por si só. A
real dimensão do quanto a poesia pode dizer mais verdades do que a filosofia,
assim como o ensaio não possui uma linguagem de evidências, como muitos poetas
já afirmaram, e a poesia, entre outras coisas, é a linguagem da evidência.
Enfim, os limites entre o ensaio e a poesia são nebulosos e movediços. A prosa
literária sem poesia é um mero documento ou uma narrativa fossilizada. Nada mais.
Observação: Este texto foi publicado, impresso, pela Revista Filosofia.