quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017



  O que podem os diários?

Ana Maria Haddad Baptista
            
Kant, entre  dezenas de outros que poderiam ser citados, foi um dos principais pensadores a estabelecer bases sólidas para reconhecermos um novo modelo de subjetividade. Para se percebê-la  muito próxima do que hoje a entendemos. Ou seja, em que medida dialogamos com nossa interioridade? Em que medida temos acesso à nossa verdadeira forma de existir? Um dos motivos pelos quais o Romantismo, em toda a sua extensão, foi, de certa forma, tão revolucionário. A subjetividade, a partir de Kant e dos românticos, emerge com novos contornos.
            Nessa medida, cartas, memórias e diários passam a ser entendidos sob o olhar da desconfiança de nossas aparentes verdades. De qualquer ângulo que se possa imaginar, diários significam, de certa maneira, confissões íntimas. Subterrâneas. E além disso tudo, um longo diálogo com os níveis mais profundos de nossa subjetividade. Uma espécie de abertura para o ser.
            Diários, de nosso saudoso Lúcio Cardoso, uma obra editada por Ésio Macedo Ribeiro, Civilização Brasileira, transborda em talento escritural, em despojamento existencial e, sobretudo, em belas lições de humanidade. Os Diários foram organizados de forma meticulosa. No diário 1, em especial, nota-se o processo de amadurecimento de Lúcio Cardoso em diversos graus. Um tema recorrente desta parte é o que o artista tem a nos dizer sobre suas tremendas dificuldades a respeito das filmagens que faz. E conhecemos, então, o longo caminho para se materializar, não somente um filme, mas, sobretudo, um sonho. Lúcio Cardoso sonhava com a perfeição! Não a meticulosidade dos vaidosos...mas chegar a uma expressão máxima de verdade, veracidade...Incrível como Lúcio buscava a verdade a qualquer custo (diga-se de passagem que seus romances sempre buscaram isso). A arte exprimindo o recôndido do ser. E como tal exigia de si mesmo a sinceridade interior. Nessa busca incansável pela expressão mais pura, encontra-se cara a cara com a solidão, como no seguinte trecho: "Quantas vezes, como agora, diante do erro irremediavelmente cometido, terei de reconhecer que o meu mal - o grande mal de quase todo mundo, mas que em mim assume proporções catastróficas - é o de uma imaginação que nunca permanece em repouso? Não há um terreno vedado ao meu trabalho, percorro a realidade como se todas as coisas tivessem o conteúdo do sonho. O que me consome, ai, é a extensão da minha solidão.  E também: "X já não está aqui. As águas do mar nos separam. Mas é de ausências assim, terrivelmente amargadas, que se constrói a possibilidade de ficar. Não podemos ser tão constantes quanto o tempo, que não nos esquece e nem nos abandona nunca. A imaginação, esse ácido verde, deteriora os mais sólidos sentimentos. Enquanto o tempo é impassível, não perdoa e nem se distrai. Cumpre pois que façamos como se ele não existisse, e atravessamos essas ausências, serenos como se apenas fechássemos os olhos a um sono reparador. Só assim podemos impedir que se destruam os propósitos de solidariedade que condimentam os mais eternos, os mais constantes votos de amor. E que a solidão nos ajude." Em outras passagens o autor faz outras reflexões a respeito de seus momentos de solidão. E ao mesmo tempo expõe, para si mesmo, o quanto o processo de criação verdadeiramente artístico exige uma verdade interior que se traduz no sofrimento, nos limites e nos confrontos com a liberdade de criação e a disponibilidade material, em diversos níveis.
            Um outro aspecto que chama a atenção em Diários é o poder de escrita de Lúcio Cardoso. Ao mesmo tempo em que a obra é, decididamente, extensa, em nenhum momento, a sua leitura cansa. Isso indica, em grande parte, o poder de sedução de um escritor que se aproxima dos escritores da literatura universal. Em cada trecho do diário, necessariamente, temos que parar. Refletir essa busca da verdade que o autor nos induz, seduz e reconduz. E com isso a pensar  espaços de interioridade inusitados. Não há como escapar de suas reais armadilhas, como no seguinte fragmento: "Sei muito bem que atravesso agora uma hora escura de transição; ou adquiro o aspecto do novo homem que surge dentro de mim ou pereço sob os fragmentos do antigo. Não se muda aos poucos, mas aos saltos - e é fácil perder-se o fôlego de uma passagem à outra. Acho desnecessário repetir que não sou agora nem melhor nem pior, apenas eu mesmo." Depreende-se deste trecho, que o autor retoma e retorna com outras indagações, um ponto crucial em nossa existência, ou seja, em que medida mudamos? Em que medida mantemos nossa continuidade? E nossa unidade? E com isso aspectos de continuidade temporal  são pensados pelo autor para indicar aos possíveis leitores a ação do tempo que jamais consegue se fixar. Não somente fora de nós. Mas, inclusive, em nossa subjetividade.
            Conclui-se, quase que facilmente, que a obra em questão... uma perspectiva de escrita tão estranha à contemporaneidade, é um grande exercício do pensamento. Mas que requer uma disponibilidade temporal-existencial que dificilmente nos é permitido pelos sistemas, implícitos ou não, dos poderes estabelecidos. Esses poderes que nos esmagam e que de forma hipócrita insistem em subtrair nossa temporalidade. Que insistem em roubar nossa liberdade. O pior é constatar que, hoje, poucas pessoas estejam cientes disso. Há um mecanismo perverso que mascara a subtração do ser. A subtração da criação. Automatiza e petrifica a sensibilidade. Atrofia a percepção. Logo, a criação artística se ressente...mas não desiste em sua obstinação que é resistir e reconciliar o homem em sua incerta busca de unidade.

Obs: Este texto foi publicado na Revista Filosofia.