O que podem os diários?
Ana Maria Haddad Baptista
Kant, entre dezenas de outros que poderiam ser citados,
foi um dos principais pensadores a estabelecer bases sólidas para reconhecermos
um novo modelo de subjetividade. Para se percebê-la muito próxima do que hoje a entendemos. Ou
seja, em que medida dialogamos com nossa interioridade? Em que medida temos
acesso à nossa verdadeira forma de existir? Um dos motivos pelos quais o
Romantismo, em toda a sua extensão, foi, de certa forma, tão revolucionário. A
subjetividade, a partir de Kant e dos românticos, emerge com novos contornos.
Nessa medida, cartas, memórias e
diários passam a ser entendidos sob o olhar da desconfiança de nossas aparentes
verdades. De qualquer ângulo que se possa imaginar, diários significam, de
certa maneira, confissões íntimas. Subterrâneas. E além disso tudo, um longo
diálogo com os níveis mais profundos de nossa subjetividade. Uma espécie de
abertura para o ser.
Diários,
de nosso saudoso Lúcio Cardoso, uma obra editada por Ésio Macedo Ribeiro,
Civilização Brasileira, transborda em talento escritural, em despojamento
existencial e, sobretudo, em belas lições de humanidade. Os Diários foram organizados de forma
meticulosa. No diário 1, em especial, nota-se o processo de amadurecimento de
Lúcio Cardoso em diversos graus. Um tema recorrente desta parte é o que o
artista tem a nos dizer sobre suas tremendas dificuldades a respeito das
filmagens que faz. E conhecemos, então, o longo caminho para se materializar,
não somente um filme, mas, sobretudo, um sonho. Lúcio Cardoso sonhava com a
perfeição! Não a meticulosidade dos vaidosos...mas chegar a uma expressão
máxima de verdade, veracidade...Incrível como Lúcio buscava a verdade a
qualquer custo (diga-se de passagem que seus romances sempre buscaram isso). A
arte exprimindo o recôndido do ser. E como tal exigia de si mesmo a sinceridade
interior. Nessa busca incansável pela expressão mais pura, encontra-se cara a
cara com a solidão, como no seguinte trecho: "Quantas vezes, como agora,
diante do erro irremediavelmente cometido, terei de reconhecer que o meu mal -
o grande mal de quase todo mundo, mas que em mim assume proporções
catastróficas - é o de uma imaginação que nunca permanece em repouso? Não há um
terreno vedado ao meu trabalho, percorro a realidade como se todas as coisas
tivessem o conteúdo do sonho. O que me consome, ai, é a extensão da minha
solidão. E também: "X já não está
aqui. As águas do mar nos separam. Mas é de ausências assim, terrivelmente
amargadas, que se constrói a possibilidade de ficar. Não podemos ser tão
constantes quanto o tempo, que não nos esquece e nem nos abandona nunca. A
imaginação, esse ácido verde, deteriora os mais sólidos sentimentos. Enquanto o
tempo é impassível, não perdoa e nem se distrai. Cumpre pois que façamos como
se ele não existisse, e atravessamos essas ausências, serenos como se apenas
fechássemos os olhos a um sono reparador. Só assim podemos impedir que se
destruam os propósitos de solidariedade que condimentam os mais eternos, os
mais constantes votos de amor. E que a solidão nos ajude." Em outras
passagens o autor faz outras reflexões a respeito de seus momentos de solidão.
E ao mesmo tempo expõe, para si mesmo, o quanto o processo de criação
verdadeiramente artístico exige uma verdade interior que se traduz no
sofrimento, nos limites e nos confrontos com a liberdade de criação e a
disponibilidade material, em diversos níveis.
Um outro aspecto que chama a atenção
em Diários é o poder de escrita de
Lúcio Cardoso. Ao mesmo tempo em que a obra é, decididamente, extensa, em
nenhum momento, a sua leitura cansa. Isso indica, em grande parte, o poder de
sedução de um escritor que se aproxima dos escritores da literatura universal. Em
cada trecho do diário, necessariamente, temos que parar. Refletir essa busca da
verdade que o autor nos induz, seduz e reconduz. E com isso a pensar espaços de interioridade inusitados. Não há
como escapar de suas reais armadilhas, como no seguinte fragmento: "Sei
muito bem que atravesso agora uma hora escura de transição; ou adquiro o
aspecto do novo homem que surge dentro de mim ou pereço sob os fragmentos do
antigo. Não se muda aos poucos, mas aos saltos - e é fácil perder-se o fôlego
de uma passagem à outra. Acho desnecessário repetir que não sou agora nem
melhor nem pior, apenas eu mesmo." Depreende-se deste trecho, que o autor
retoma e retorna com outras indagações, um ponto crucial em nossa existência,
ou seja, em que medida mudamos? Em que medida mantemos nossa continuidade? E
nossa unidade? E com isso aspectos de continuidade temporal são pensados pelo autor para indicar aos
possíveis leitores a ação do tempo que jamais consegue se fixar. Não somente
fora de nós. Mas, inclusive, em nossa subjetividade.
Conclui-se, quase que facilmente, que a obra em questão... uma perspectiva de escrita tão
estranha à contemporaneidade, é um grande exercício do pensamento. Mas que
requer uma disponibilidade temporal-existencial que dificilmente nos é
permitido pelos sistemas, implícitos ou não, dos poderes estabelecidos. Esses
poderes que nos esmagam e que de forma hipócrita insistem em subtrair nossa
temporalidade. Que insistem em roubar nossa liberdade. O pior é constatar que,
hoje, poucas pessoas estejam cientes disso. Há um mecanismo perverso que
mascara a subtração do ser. A subtração da criação. Automatiza e petrifica a
sensibilidade. Atrofia a percepção. Logo, a criação artística se ressente...mas
não desiste em sua obstinação que é resistir e reconciliar o homem em sua incerta busca de unidade.
Obs: Este texto foi publicado na Revista Filosofia.