Nove Cartas sobre a Divina Comédia: uma
reserva poética
Ana Maria Haddad Baptista
De acordo com os mais prestigiados estudiosos da cultura
grega, o Olimpo tem suas leis. Dizem que por lá existe uma rotina, aliás, nada
fácil. Zeus e outros habitantes possuem obrigações. Inadiáveis. Numa atmosfera
de leveza insustentável houve, (fato inabitual), uma verdadeira briga entre as
nove filhas de Mnemosyne. As
Musas disputavam, entre si, quem, realmente, teria transportado para as veredas
discretas-secretas à Fonte do Esquecimento e às famosas águas congeladas da
Memória, um certo poeta. Lembramos que o universo divino de Zeus é
contraditório, ambíguo, enigmático.
Várias deusas (deuses em silêncio) intervieram na
discussão das nove prolongadoras da
Memória. Assim imaginamos, de longe, o que ocorreu quando Marco Lucchesi
finalizou Nove cartas sobre a
Divina comédia: navegações pela obra
clássica de Dante, Casa da Palavra: Fundação Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro. Obra que exala perceptos. Fascinante. Arrebatadora. Contradiz todas as
pretensas classificações textuais. Ezra Pound redesenharia 'sua tipologia'.
Blanchot não estranharia. Thomas Bernhard atenuaria o habitual pessimismo.
Goethe sorriria em suas conversas com Eckermann. Dalí subtrairia arrogâncias.
César Leal, saudoso, repetiria às constelações
: "sutilíssimo eterno interior".
Mas voltemos à briga do Olimpo: quem teria 'guiado' o
poeta? De acordo com Hesíodo, Homero e outros poetas, as nove Musas, sabe-se, presidem funções. Clio: história, Calíope: a eloquência,
Euterpe: poesia. Cada uma teria uma função primordial. Na briga Euterpe
reivindica sua posição. Mas as outras Musas não se calam. Athena, sabiamente, busca
uma base conciliatória. Faz com que as nove
Musas acreditem que, unidas-reunidas,
conduziram o poeta aos portais da Memória (fontes do passado/ futuro e
da verdade).
Nove cartas sobre a
Divina comédia é um presente-plural
(plenitude amorosa) que Marco Lucchesi dá para a humanidade. Explodem, ao abrirmos
o livro, imagens, ritmos sinuosos, cores, planos, profundidades, musicalidades.
O sublime de Kant e Goethe permeiam o todo. Impossível, de saída, iniciarmos a
leitura das cartas. O projeto editorial convoca os sentidos do leitor a,
primeiramente, folhear o livro em suas diversas dimensões. Após a tomada do fôlego inicial, aquele que eterniza instantes, pressurosos-temerosos com o que se
anuncia, ouvimos, intimamente, vozes (vozes, veludosas, vozes) que apresentam,
suavemente, a estrutura da obra de Dante. Ondas
convidativas de águas ora calmas, ora quase inavegáveis: "Caro
Leitor, Gostaria que aceitasse estas cartas, como um gesto de amizade, atraídos
como somos pela Divina comédia. Preferi
não fazer uma introdução, com princípio meio e fim. Trata-se de uma declaração
de amor e, portanto, exige a forma epistolar." E o autor, sutil e
amorosamente, leva, os leitores, a uma viagem-vertigem pela Divina comédia.
Cada carta é um primor.
Ricamente espelhadas, visto que as ilustrações se interpõem entre as cartas.
Majestosamente. Há uma carta que se
apresenta com a "filosofia do amor". E aí o diálogo perfeito com
Platão e outras fontes não somente filosóficas, mas, também, históricas. O
ponto máximo desta carta: "o que é o amor?" Lucchesi nos leva para Santo
Agostinho e: "Caro amigo: gosto de lembrar o filósofo Marsilio Ficino,
quando indaga o que buscam os amantes. Ele responde que os que amam não sabem
ao certo o que procuram. Sentem saudades um do outro, quando separados. E,
mesmo juntos, não cessa uma falta indefinida, que os aproxima quando distantes
e os afasta quando próximos. O mistério da beleza convoca os amantes a uma
dimensão que os ultrapassa." E aqui, explica o autor, um dos grandes enigmas
do amor, ou seja, ama-se com mais intensidade quando os amantes estão
separados. Mas a presença não satisfaz a
incompletude. A ausência tortura. Carta
após carta são convites para visitarmos ou, obrigatoriamente, revisitarmos a
obra de Dante: "...é preciso que você não perca de vista que o Paraíso de
Dante celebra a altitude, física e metafísica, do Empíreo, de Deus e da Amada.
Que a sua numinosidade depende, sobretudo, da altitude e da transcendência,
cuja poesia promove uma abertura sem termo, emprestando a cada verso o
sentimento do infinito, a paixão das alturas e uma difusa nostalgia do
mais." Lucchesi instiga leituras não somente de Dante! Existem outras
vozes (de autores e obras) que fizeram e fazem parte de seu percurso
intelectual.
No entanto, mesmo assim, a leveza e intensidade poética,
sempre perseguida pela amplitude dos silêncios da boa literatura, permitem, a quem
nunca teve acesso à Divina comédia, envolver-se com ela. Com mediações suaves e
sussurrantes a espaços desconhecidos, em princípio, cheio de brumas.
Entretanto, dissolvidas, de forma gradual, à medida que a poeticidade do autor, misturadas aos autores que cita,
nos conduz, sob seu olhar cristalino e
puro, ao universo do próprio autor:
"Todos buscam um porto no mar infinito do ser". Além de tudo, Lucchesi presenteia os leitores
com os cinco capítulos da Teologia
mística e uma iconografia (imagens divinas) da Divina Comédia. Esta
obra é a prova literal de que a palavra poética conduz o homem a uma
reconciliação consigo mesmo e de que a poesia tem o poder do distanciamento.
Devolve-nos a capacidade-liberdade de ser o que realmente somos, como afirmou
Octavio Paz. Se pensarmos na espessura vertical-plural que
rege o conceito deleuziano de devir, Nove
Cartas sobre a Divina comédia é: Devir-humanidade. Devir-sublime.
Devir-arqueologia dos sentidos. Devir-
atemporalidade. Eis por que se justifica a briga entre as nove Musas.
Obervação: Este texto foi publicado pela Revista Filosofia, 121, dezembro, 2016.