Néctar de Letras: Breve
viagem por uma Ilha Voadora e a língua laputar
Ana Maria Haddad Baptista
Grandes e confiáveis pensadores, de
uma forma ou de outra, perceberam que determinadas épocas possuem vazios.
Silêncios. Hiatos. Uma das explicações possíveis: nada haveria para ser dito.
Mas eis que chega Rudimentos da Língua
Laputar, Marco Lucchesi, Editora
Dragão, Rio de Janeiro. Na real: 'O livro por vir' anunciado por Blanchot. Ou seja: uma obra
extraordinariamente inclassificável. Insubordinada a qualquer tipologia. Pode,
aparentemente, ser uma gramática. Poema. Romance. Ensaio. Documento. Ouso
dizer: Rudimentos da Língua Laputar é
uma armadilha. Preparam-se leitores!
O título altamente provocativo. Que
língua seria a laputar? E não há outro caminho se não o de buscar em outras fontes a origem da palavra.
Para quem não leu e, também, para quem leu, somos levados às fascinantes
Viagens de Gulliver. Laputa foi uma das ilhas imaginárias visitadas
por Swift. Uma ilha flutuante e voadora. Apenas o início de uma viagem desafiadora pela obra de Lucchesi. Na
ilha voadora os habitantes estavam preocupados com a linguagem matemática,
musical. Tudo tinha formas geométricas e se reportava a cálculos. No entanto
nada era uniforme. Os cálculos da matemática de nada adiantavam na prática. E
mais: os habitantes de Laputa viviam distraídos e para dentro deles mesmos.
Sempre fora do tempo presente. Esqueciam-se de si. Seres semi-desmemoriados.
Lucchesi adverte: "Foi árduo o
trabalho de recuperar os documentos antigos, que abordavam, embora de modo
fragmentado, a estranha língua praticada pelos míticos habitantes da ilha de
Laputa [...] Sou o primeiro a reconhecer-lhe a insuficiência, baseado num forte
conjunto de lacunas[ leitor, não se iluda..."cada língua guarda em si uma
verdade que não pode ser traduzida", disse Guimarães Rosa]. E, no entanto,
orgulho-me de haver fixado certos pontos da sintaxe e da morfologia laputar. A
que se soma um breve glossário extraído de documentos incertos e
disparatados." A partir da advertência do autor o início de uma aparente gramática (condensada) da língua laputar. Apresenta-nos as vogais e as consoantes. Os gêneros. Não
há, segundo o autor, o artigo definido. E aqui penso: uma língua em que as
indefinições prevalecem? Lembremos que a ilha é flutuante!
As interjeições são poderosos
índices, nesta obra, para sabermos a respeito de alguns sentimentos que os
habitantes da ilha sentiam. Os estabelecidos por Lucchesi são: Deç: espanto;
Kusa: admiração; Heum: dor; Alas: descrença; Fu: nojo; Susp: coragem. O
trabalho arqueológico do autor se
traduz, entre outras coisas, na busca de
elementos linguísticos das mais variadas línguas do mundo. Em uso ou desuso.
E dentre tantas outras coisas que a
leitura desta obra possibilita, um dos pontos essenciais: as dimensões de
memória. Pelo glossário podemos ter parte da história do que sentiam e faziam
os habitantes. Notável a expressão: Deniz: mar
interno. Que coerência espetacular! Os habitantes da ilha eram ausentes,
imersos em pensamentos, mergulhados, de fato, em mares internos. Memórias,
temporalidades, subjetividades. Uma outra dimensão: os jogos temporais do
autor. No glossário chamam a atenção substantivos que não são da época da ilha,
tais como: transmissor de rádio, relógio
de pulso, filme, computador. Há muitas outras que remetem ao futuro.
O leitor atento não tem como escapar
da rede ardilosa de Lucchesi: como viviam as pessoas da ilha voadora? O que
faziam? E a partir disso, (condição inelutável), constrói as sua histórias. O
glossário instiga a imaginar romances, contos, crônicas, poemas. Desafia todos
os graus de imaginação. Poeticidade pura. Disposto em colunas possibilita o
cruzamento (tudo por conta da imaginação do leitor) das palavras e construções indefinidas de poesias.
Mas o exercício de pensamento-linguagem-tempo-memória
proposto pelo autor não concede: a
bibliografia imaginária, remete ao futuro. Os livros supostamente usados para a
confecção da língua laputar são de 2070, 2067, 2045 e outras datas futuras.
A genialidade sutilíssima desta obra: o
autor confessa que a escreveu há trinta
anos. Reviu em julho de 2015 e depois publicou. Nessa medida, traz um estrato de sua memória para compor uma
simultaneidade absoluta de temporalidades /memórias. Possibilita pensar o
eterno e o intemporal, como diria Borges. (Lembremos... condenação existencial seriamente
postulada por Bergson e Deleuze: o
passado nos é concedido sob a
perspectiva do presente).
Somente a grandiosidade de uma obra artística
possui simultaneidades cintilantes de temporalidades. O projeto gráfico da obra completa a intenção
do autor: Tudo que está em laputar é grafado em azul. Um azul indefinido e
esvoaçante ( flu tu
an te ). Os mares azuis que separam os continentes ao mesmo tempo que
os une pelos Rudimentos da Língua Laputar. Parafraseando Stefan
Zweig: de todos os mistérios do universo nenhum é mais profundo que o da
criação-artística-literária. Alec, Alétheia .
Obs: Este texto foi publicado pela Revista Filosofia.